Coluna

Lula no Acampamento Terra Livre: promessas de uma nova aliança com os povos originários

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Após dois anos de edições virtuais da maior mobilização indígena em âmbito mundial, mais de oito mil indígenas, de 200 povos originários, retornaram à capital federal e receberam o ex-presidente Lula no ATL - Kamikia Kisedje
A retomada das terras invadidas vem sendo a forma mais eficaz de garantia de sobrevivência dos povos

Por Carlos Eduardo Lemos Chaves*

Abril, tradicionalmente mês de lutas sociais, marcado principalmente pelas marchas e ocupações dos movimentos de lutas pela terra, mais uma vez é testemunho do protagonismo dos povos indígenas, com a 18ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL). Após dois anos de edições virtuais da maior mobilização indígena em âmbito mundial, mais de 8 mil indígenas, de 200 povos originários, retornaram à capital federal, expondo suas pautas e realizando diversas marchas e protestos nas cercanias blindadas do Congresso Nacional, arena onde tramitam projetos genocidas e inconstitucionais que favorecem o garimpo, a mineração, o agro e o hidronegócio sobre seus territórios já demarcados e as inúmeras terras em processo de demarcação ou sem nenhuma providência do Estado neste sentido.

No dia 12 de abril, o pré-candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva foi recebido na plenária do ATL sob efusivas manifestações de apoio, em uma estratégica tomada de compromissos pelos povos indígenas com o favorito à chefia do próximo mandato à frente do Executivo federal, pensada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do Acampamento Terra Livre.

Após a escuta pelo ex-presidente Lula das falas das lideranças representantes das organizações regionais que compõem a base da Apib, Sônia Guajajara expôs um resumo das principais pautas que compõem a carta-compromisso, aberta à sociedade e assinada publicamente pelo pré-candidato, que assumiu um pacto com os povos indígenas para uma agenda em torno do seu possível retorno ao Palácio do Planalto.

Sônia Guajajara pautou a retomada da democracia a partir do compromisso com a conclusão das demarcações de terras indígenas até o final do ano de 2026, como propõe a carta, com a reativação dos espaços de participação e controle social de políticas públicas para os povos indígenas, a exemplo do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), extinto pelo atual governo. Assim como de outros espaços de promoção de políticas voltadas para a saúde e educação indígena, enfatizando a intenção destes povos em não esperar pela eleição, mas juntar forças ao pré-candidato petista desde agora, participando da elaboração de um projeto para um “novo Brasil”.

Para tanto, a Apib vem investindo na ampliação da participação indígena nos espaços de tomada de decisão e execução de políticas públicas, sobretudo nos parlamentos estaduais e federal, com a apresentação de mais de trinta pré-candidaturas indígenas. Sônia, que foi candidata a vice-presidência pelo PSol, compondo chapa com Guilherme Boulos, e hoje se apresenta com pré-candidata a deputada federal pelo Estado de São Paulo sob a mesma legenda, assegura o preparo dos povos indígenas para assumir a gestão pública, assim como gerenciam a seus modos de vida em seus territórios, assumindo sua defesa ante a omissão do Estado, aceitando o desafio inclusive de chefiar a Fundação Nacional do Índio (Funai).

A Coordenadora da Apib expôs as contradições da agenda socioambiental das gestões petistas, ao afirmar que os povos indígenas estão preparados para participar de um novo governo em que “não haja mais Belo Monte” ou projetos como o da mineradora Belo Sun, que pretende extrair de ouro na mesma região da construção da malfadada usina hidrelétrica, afirmando que: "o que nós queremos são nossos territórios, nossa biodiversidade, o nosso modo de vida respeitado e protegido".

Contradições aparecem já no início da fala do ex-presidente Lula, quando admite a elaboração pelo ex-ministro da educação petista, o paulista Aloizio Mercadante, homem, branco, com formação no campo da economia, de um programa indígena para um futuro novo governo. O que parece revelar, além do marcante autocentrismo da elaboração de um programa de governo alheio à participação popular na sua formulação, um possível tratamento economicista a ser dirigido à questão indígena pelo partido que tocou adiante projetos como a própria usina de Belo Monte, a transposição do Rio São Francisco e o chamado Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba. Projetos que ignoraram os impactos sobre povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais, favorecendo o agronegócio e setores da construção civil e geração de energia, historicamente violadores dos direitos dos povos do campo.

Ademais, a afirmação do ex-presidente de que "certamente os governos do PT não fizeram tudo que deveriam ter feito, mas certamente ninguém fez mais que nós fizemos nas nossas relações com os povos indígenas", não revela que também houve pouco avanço desses governos na demarcação de terras indígenas, direito constitucional e fundamental à preservação de seus modos de vida e continuidade da sua existência.

As retomadas das terras invadidas por agentes privados, com o beneplácito dos poderes de Estado, vêm sendo a forma mais eficaz de garantia de sobrevivência dos povos e comunidades originárias, com a manutenção de suas línguas, usos, costumes, crenças e tradições. Não por menos, a ação com repercussão geral reconhecida pelo STF, que deve decidir sobre a aplicação a tese do marco temporal às demarcações, trata de um caso de retomada de terras tradicionais pelo povo Xokleng, de Santa Catarina.

Reconhecer, como afirma o ex-presidente, a necessidade de que a sociedade perceba que os povos indígenas têm o direito de reivindicar seus direitos e não podem ser violentados por isso, é estar ciente de que enquanto o Estado não cumprir com seu dever constitucional, haverá resistência e formas autônomas de garantir direitos reconhecidos e jamais efetivados ao longo da história constitucional brasileira.

Em todo caso, a iniciativa da Apib de abrir um diálogo já no momento da pré-candidatura, com um partido político capaz de apresentar uma proposta progressista de reconstrução de um país submetido ao deliberado genocídio da sua população, com efeitos dramáticos para os povos e comunidades originários, pode ser a oportunidade para a consolidação de um novo governo pautado por efetiva participação popular.

O chamado a essa construção, tomando o exemplo dos povos indígenas, poderia ser prioridade para outros movimentos pautados na luta por seus territórios e pela efetivação de direitos humanos. Os compromissos assumidos pelo pré-candidato Lula, de promover um dia do revogaço de normativas editadas pelo atual governo que retrocederam em direitos sociais fundamentais, como proposto pela deputada federal indígena Joenia Wapichana, e de que, caso assuma o governo, “ninguém nesse país (...) vai fazer qualquer coisa em terra indígena", sem que haja a concessão, decisão e concordância desses povos, poderiam inaugurar um novo paradigma na relação do Estado brasileiro com as sociedades originárias.

Luiz Inácio Lula da Silva assume que em 12 anos longe do governo, aprendeu muito e que se tornou mais “sabido”, mais calmo e mais experiente. O que pode ser real, se, uma vez eleito, honre o compromisso de criar um ministério para tratar da questão indígena, com uma representação desses povos à frente da pasta. Resta esperar para saber se teremos uma inédita parceria entre povos originários e governo na efetivação das políticas públicas constitucionais voltadas à existência digna dessas sociedades ancestrais em território nacional.

*Carlos Eduardo Lemos Chaves é mestre em Direito Agrário pelo PPGDA/UFG; integrante da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais no Estado da Bahia – AATR.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Felipe Mendes