opinião

Análise | Prisões: o colapso dos Conselhos da Comunidade

A militarização continua se espalhando e se enraizando no modus operandi das forças de segurança

São Paulo (SP) |
Muitos presos, durante a pandemia, passaram a encaminhar cartas para a Pastoral Carcerária relatando a realidade de dentro das unidades prisionais - Carlos Alberto / Imprensa MG

Na década de 80, durante o debate legislativo envolto na Lei de Execução Penal, uma proposta parecia ousada, criativa e com grandes potencialidades: criar e estabelecer um conselho composto por representantes da sociedade civil que tomassem conhecimento e participassem da realidade vivenciada pelas pessoas presas. Caberia aos conselhos da comunidade visitar presídios, conversar com as pessoas presas, apresentar relatórios, obter itens e recursos para a melhor assistência da pessoa presa e participar das propostas de políticas públicas para o sistema prisional local.
 
A retórica foi muito discutida ao longo do processo legislativo. Aparecida revelou que foi “neste contexto que surgiu o Conselho da Comunidade, como instituição para explicitar e intermediar a participação ativa da comunidade na execução da política penitenciária, tendo origem na própria comunidade, para enfrentar os desafios da própria sociedade,  através de uma política de mobilização, de defesa de direitos e de execução de ações para a reinserção social de detentos e egressos, tendo como baluarte a dignidade da pessoa humana”.

Essa conjuntura acontecia também em outros países. Na década de 80 foram publicados diversos tratados internacionais direcionados para a proteção dos direitos humanos, especialmente das pessoas presas. No mesmo período, em meados de 1981, por exemplo, a Polônia experimentou o mesmo debate, alterando suas normas para criar dois modelos de associação: Patronat e Polish Penitentiary Association. Essas formas organizacionais foram estabelecidas para  tentar facilitar o envolvimento da comunidade nas pautas prisionais e pós-prisionais.

Entretanto, alguns limites institucionais foram impostos logo de imediato no caso brasileiro. Que fique claro que esse artigo não visa argumentar pelo fim dos Conselhos da Comunidade; pelo contrário, reconhecemos a sua importância e sua potencialidade. O foco desta análise são as limitações concretas que os Conselhos têm enfrentado desde seu surgimento. O Juízo da Execução, por exemplo, ficou responsável pela composição e instalação do conselho, o que parecia extremamente contraditório, afinal a ideia abstrata era estimular o desenvolvimento de um sistema que monitorasse a violência carcerária de fora, com olhar comunitário e externo. As rédeas do conselho ficaram nas mãos exclusivas do judiciário, que passou a escolher subjetivamente as pessoas que irão compô-lo e que puxava o freio a todo instante para cada tentativa de avanço nesse instrumento de contenção da violência prisional.

Essa derrota custou caro, pois desde a positivação do conselho da comunidade no ordenamento jurídico, foi difícil engatilhar a criação deles. O judiciário se transformou em barreira intransponível para o seu desenvolvimento, fazendo com que a comunidade se distanciasse dos espaços prisionais. A pessoa presa continuou abandonada pela comunidade.

Algumas tentativas de mudar a rota do desastre foram desenvolvidas. A “Cartilha Conselhos da Comunidade” (BRASIL, 2008) buscou desvendar os mistérios institucionais envolvendo os Conselhos, levando conhecimento a respeito da realidade e da atuação. Para cumprir tal objetivo o texto revelou “informações básicas sobre suas funções, composição e forma de atuação”.

A Resolução CNJ nº 96/2009 e a Resolução CNPCP nº 09/2010 tentaram dar outras fronteiras para o Conselho da Comunidade. A primeira fixou que o então criado Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário deverá acompanhar a instalação e o funcionamento, em todos os Estados, dos Conselhos da Comunidade, em conjunto com o juiz da execução penal. A segunda recomendou à administração de unidades prisionais e de delegacias de polícia que os Conselhos da Comunidade tenham acesso livre a todas as dependências das unidades prisionais e de detenção, bem como a todas as pessoas presas e funcionários.

Ainda, a Resolução nº 10/2004 do CNPCP estabeleceu que o Conselho poderá ser integrado também por entidades religiosas e educacionais, associações sem fins lucrativos, clubes de serviços e sindicatos. A depender da configuração, “o Conselho, órgão que deveria ser um colegiado de pessoas, pode passar a ser um colegiado de entidades, o que representa uma mudança considerável”.

Mais uma vez colocando o judiciário no centro do debate, todos/as conselheiros/as deverão ser nomeados pelo Juízo da Execução, que poderá também escolher outras pessoas. O rol dos integrantes do Conselho da Comunidade é exemplificativo, permitindo a intervenção do judiciário. As peças do tabuleiro, portanto, são manipuladas pelo próprio judiciário.

Depois de todo esforço, as tentativas de construir um sistema de monitoramento externo do sistema prisional parecem terem sido em vão. Para comprovar, recentemente o Conselho Nacional de Justiça publicou uma pesquisa mostrando a precariedade institucional dos conselhos comunitários. O resultado é nefasto. Cerca de 404 representantes de Conselhos da Comunidade de Execução Penal responderam ao questionário. Desse total, 19% responderam que seus conselhos não possuem quaisquer recursos financeiros e que a escassez de dinheiro se traduz em precariedade material. Analisando os itens básicos de uma instituição, apenas 40% dos conselhos possuem computadores, e só 36% contam com uma impressora. O pior é que apenas 31% dos entrevistados informaram realizar visitas mensais aos espaços de privação de liberdade.

Há, ainda, uma situação-problema que destrói por completo a finalidade essencial do conselho comunitário: a falta de participação da sociedade civil. Os dados do CNJ apontaram que os representantes da OAB estão presentes em 90,3% dos conselhos que responderam ao questionário, seguidos por assistentes sociais (63% dos conselhos); representantes de associações comerciais (55%) e juízes (44,8%). Há, ainda, a baixa presença de sobreviventes do cárcere (3%) e de seus familiares (5%).

O impacto desse cenário é perverso. O ideal envolvendo a criação de uma ferramenta de prevenção e combate à tortura externa, autônoma e combativa se transformou em um pesadelo terrível. Com o abandono, as pessoas presas passaram a ser cada vez mais vítimas da violência estatal. A tortura se consolidou como prática sistemática, constante e difusa de tratamento das pessoas presas, como uma forma de manter a máquina de moer gente funcionando. A militarização continua se espalhando e se enraizando no modus operandi das forças de segurança, que se fazem cada vez mais presentes no cárcere. O Estado está cada vez mais violento e mortífero.

Esses números revelam que os espaços do conselho se transformaram em verdadeiros palcos e canais para a implementação de políticas ainda mais punitivistas. Muitas vezes os Conselhos da Comunidade se consubstanciam em agências de mão de obra focadas na realização de reformas que ampliam as violentas estruturas carcerárias, ou mesmo tapadores de buracos paternalistas tentando resolver as deficiências e as falhas do próprio Estado.  

Há um forte apelo econômico por trás dos conselhos. Construção de celas, reformas arquitetônicas do presídio, aquisição de materiais de higiene pessoal, de limpeza, aquisição de combustível para viaturas de escolta, aquisição de remédios, dentre outras atividades que possuem custo são muitas vezes subsidiadas pela decisão dos Conselhos. Isso revela a transformação do Conselho em uma espécie de banco intermediário entre o fundo penitenciário e os gastos carcerários, fazendo a máquina financeira e violenta girar.  

Nestes anos de existência deste órgão de execução penal, encontramos conselhos formados e presididos por agentes estatais de forças de segurança. O absurdo dessa composição - como agentes de Estado fiscalizarão o próprio Estado? - revela que a finalidade dos conselhos nunca foi tentar conter a violência no cárcere. Eles foram criados apenas para legitimar o que acontece lá dentro, permitindo a eterna e inócua tentativa de reformar a prisão.

Apesar de a Lei da Execução Penal prescrever que o Conselho deverá ser composto, no mínimo, por um representante da associação comercial ou industrial, por um/a advogado/a registrado na seccional da OAB, por um representante da Defensoria Pública e por um representante da assistência social, a escolha final sobre quem comporá o Conselho ficou nas mãos subjetivas e discricionárias do Juízo da Execução, ampliando ainda mais o seu poder de comando. Percebe-se aqui o empenho do Estado em cercear a ideia inicial dos Conselhos: incorporar a sociedade civil aos órgãos de Execução Penal e dar a esta certa autonomia de resolução de conflitos.

O mesmo tentáculo de dominação do judiciário ocorreu com a falta de autonomia orçamentária do Conselho, pois continuou nas mãos do Juízo da Execução a mira para direcionar como as verbas deverão ser gastas. Isso revela que o Conselho da Comunidade perdeu sua independência e autonomia.

Por isso, além de o Conselho ser uma instituição vazia e inoperante, ele nunca exerceu a sua ação de controle por representantes da sociedade civil. Quando houve entidades que tentaram fazê-lo funcionar, estas foram barradas e fortemente hostilizadas em suas atividades. Eis o porquê de o Conselho da Comunidade, que naquele tempo tinha sido fortemente apoiado pela Pastoral Carcerária Nacional, hoje não exercer, na prática, quase nenhuma medida combativa de redução da violência carcerária.

O diagnóstico dessa enfermidade institucional foi levantado durante o 1º Encontro Nacional dos Conselhos da Comunidade, que ocorreu em dezembro de 2012. Como resultado do encontro, os participantes elaboraram uma carta apontando dificuldades e horizontes. A plenária do encontro recomendou, por exemplo, que haja “a garantia efetiva da participação social e do controle externo do sistema penal pela sociedade civil, especialmente através dos Conselhos da Comunidade e demais Conselhos e da criação das Ouvidorias independentes junto a todos os órgãos da execução penal”.

Mais do que naturalizar a prisão, como Angela Davis nos ensinou, o Estado racista naturalizou e banalizou a própria violência torturante no cárcere, construindo ideologicamente narrativas reproduzidas constantemente nos meios de comunicação e nos diálogos sociais de que as pessoas presas são descartáveis e devem morrer. Não podemos ser coniventes com esse genocídio. Destruir formas de combate à tortura - como o Conselho da Comunidade foi abstratamente desenhado - é também torturar.  

Por isso, um caminho para tentar acabar com a raiz da violência fincada no solo carcerário é a criação e o fortalecimento de mecanismos externos e autônomos de prevenção e combate à tortura, que enfrentem de frente o Estado penal e vençam esse duelo, com, no mínimo, a responsabilização dos algozes e autoridades que conduzem e engedram essa política de morte.

É imprescindível que haja abertura para a participação de coletivos de familiares e sobreviventes do sistema prisional - como as Frentes Estaduais pelo Desencarceramento - nos conselhos da comunidade e nos espaços de prevenção e combate à violência carcerária, por serem alvos e vítimas de toda a barbárie Estatal e por terem a potência política necessária para revolucionar. E para estancar de vez o sangue derramado pelas pessoas presas e suas familiares, só há uma maneira: alcançar o mundo sem cárceres.

*Irmã Petra Pfaller é coordenadora nacional da Pastoral Carcerária; Padre Gianfranco é assessor espiritual da Pastoral Carcerária Nacional; Lucas Gonçalves e Mayra Balan são assessores jurídicos da Pastoral Carcerária Nacional.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Felipe Mendes