Saberes ancestrais

"No candomblé a cozinha é o útero do terreiro”, diz chef Solange Borges

As chefs de cozinha Solange Borges e Aline Chermoula falam sobre a culinária ancestral praticadas nos terreiros

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Chef de cozinha Aline Chermoula é professora e pesquisadora da cozinha ancestral afrodiaspórica e proprietária da Chermoula Cultura Culinária - Arquivo Pessoal
Existe intolerância religiosa nas comidas, tanto que em algumas localidades tem o Acarajé de Jesus

Você já ouviu falar de comida de terreiro? Há diferenças entre a culinária praticada nos terreiros das religiões de matrizes africanas e a culinária afrobrasileira. Essa última, mais conhecida, é caracterizada com pratos típicos já conhecidos, como por exemplo, caruru, abará, vatapá, e acarajé que receberam influência cultural africana e hoje são consumidas por todas as pessoas. 

Já a culinária litúrgica dos terreiros de candomblé, as plantas e os alimentos têm um caráter espiritual, e não podem ser consumidos por qualquer pessoa. Quem explica a diferença é a chefe de cozinha Solange Borges, à frente do projeto Culinária de Terreiro. 

“O candomblé é vivência. Para você fazer uma comida dentro de um terreiro precisa passar por alguns processos: dormir na roça, tomar um banho, pedir a benção ao santo e pedir autorização para a mãe ou pai de santo ou a pessoa que cuida dessa cozinha. No candomblé a cozinha é o útero do terreiro”. Ela dá como exemplo, a receita ‘Ritambolo doce’ que é servida nas festas de candomblé e são consumidas apenas por quem é praticante da religião. 

Borges ressalta que a culinária praticada no seu projeto ‘Culinária de Terreiro’ não é a mesma que ela oferece para o seu santo, pois não tem propósito espiritual, mas uma forma de compartilhar esses saberes ancestrais. “Essa comida que eu sirvo, é afrobrasileira e pratos como acarajé, são de receitas que aprendi nos terreiros que frequentei e desenvolvo elas como uma forma de desenvolver a memória afetiva”. 


“As comidas, os fenótipos, a forma de vestir e as práticas religiosas do povo preto têm esse marcador do racismo que quer nos invisibilizar, querem nos manter na base da pirâmide” / Arquivo Pessoal

Essa culinária ancestral tem a ver com a linhagem de mulheres que carregam memórias, afetos e receitas de preparos de geração em geração de forma oral como resistência da cultura, como é caso de receitas de pirão, mingau de cachorro, efó de taioba que ensinadas pela chef Solange Borges em cursos e vivência no Sítio Pilão Manso, na Bahia. Assim como Borges, a chef Aline Chermoula também aprendeu receitas com a mãe. 

Comida e racismo

Aline começou a ter contato com a gastronomia ancestral, mas depois a vontade de conhecer mais sobre o assunto extrapolou os muros de casa. Ela se tornou pesquisadora da culinária afrodiásporica e passou a aprofundar e conhecer mais sobre os segredos dessa culinária, já que ela não foi contada nos livros de história nas escolas. 

“Existe um apagamento da nossa cultura enquanto povo preto, de forma proposital a fim de exterminar a nossa existência  Existe uma intolerância religiosa com as comidas de terreiro, tanta que em algumas localidades tem o acarajé de Jesus, que não seria aquele do santo do terreiro, é uma deslegitimação aquele acarajé que é do terreiro de candomblé. Essa segregação está presente desde o período colonial”.

A pesquisadora explica que algumas comidas fazem parte desse universo chegando a não ser consumidas, como é o caso do azeite de dendê e o quiabo.

No ano passado, foram feitas 571 denúncias de violação à liberdade de crença no Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH).  O levantamento traz violações contra todas as religiões, porém os números de 2019 mostram que entre as denúncias identificadas mais da metade dos crimes foram cometidos contra pessoas e comunidades de religião afrobrasileiras. 

Para Borges o racismo está presente quando o assunto é comida de terreiro. “As comidas, os fenótipos, a forma de vestir e práticas religiosas do povo preto têm esse marcador do racismo que quer nos invisibilizar, querem nos manter na base da pirâmide”.

Na comida de terreiro ritualística, segundo Reginaldo Prandi, professor aposentado da Universidade de São Paulo e autor de "Mitologias dos Orixás", cada orixá tem preferência por um alimento. Por exemplo, os Ibêjis, orixá duplo do candomblé sincretizados com os santos católicos gêmeos, Cosme e Damião, protetores das crianças, se oferece caruru e também acarajé, abará. 

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Para Aline, a comida de terreiro reforça a energia que vem do orixá, fortalece o espaço do terreiro e quem está dentro dele. 

“Dentro do candomblé, a comida é sagrada, porque ela é oferecida para o santo e essa comida o praticante também come e a comida que o seu santo não come você também não come, porque se não ele vai se distanciar de você. Então para você caminhar lado a lado com eles, você tem que se alimentar da mesma comida”, explica a chef e dona do restaurante Chermoula, que fala como pesquisadora e não praticante da religião.  

Ela diz que a partir da comida é ativado o axé, uma energia que impulsiona a vida. “Quando eu como o que os meus ancestrais comiam, me conecto com eles e permito que a força ativa deles atue dentro de mim, isso me deixa mais forte, me eleva e promove conexão com os antepassados”. 

Edição: Douglas Matos