"O debate não me preocupa, me preocupa a obstrução ao governo". Assim o presidente argentino, Alberto Fernández, respondeu a uma série de questionamentos sobre a diferença de posicionamento com sua vice, Cristina Fernández de Kirchner, à imprensa espanhola.
Em sua quarta visita presidencial à Europa, Fernández concedeu uma entrevista ao jornal El País nesta terça-feira (10) e destacou que os conflitos internos da coalizão governista, Frente de Todos (FdT), não são a causa da crise argentina e, portanto, são outros os debates que devem acontecer neste momento.
"Com todo o respeito, durante a entrevista você me convidou a subir num ringue contra Cristina, mas ela não é minha inimiga, meu inimigo é Macri", frisou o mandatário, referindo-se ao presidente do governo anterior, Mauricio Macri (Partido Republicano - PRO).
Presidente e vice, que não se falam há dois meses, defendem posturas diferentes na coalizão em relação a como enfrentar a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e responder à alta inflação e pobreza no país, sintomas deixados pela dívida macrista e aprofundados pela pandemia de covid-19.
O país passa por um momento-chave na política econômica com a primeira visita de funcionários do FMI, no marco de um acordo de renegociação da dívida, com 4 anos de postergação de pagamento, que rachou a votação dentro da coalizão. A ala kirchnerista votou contra a presença do FMI revisando as contas do país, o que deverá acontecer trimestralmente, sendo a primeira neste mês, em maio. Questionado se o país tem condições de pagar a dívida e sobre a divisão interna da coalizão sobre o acordo aprovado em março, o presidente voltou a ressaltar que este acordo "não compromete a população".
"Nestes quatro anos, temos que recuperar e criar reservas para enfrentar o pagamento. Em campanha, disse que não faria um acordo que levasse a uma reforma trabalhista, da previdência ou uma reestruturação do Estado que eliminasse direitos, e cumpri", disse Alberto Fernández. "São medidas [do acordo com o FMI] que acreditamos. O déficit fiscal é ruim e temos que diminui-lo. A questão é como. Podemos fazê-lo da forma como o FMI quer, com um ajuste brutal, ou como nós escolhemos, paulatinamente. Não é algo imposto."
Agenda internacional em semana crítica
A viagem, que começou na Espanha nesta segunda-feira (9), agora passa pela Alemanha e há previsão de uma passagem ainda não confirmada à França para encontrar-se com seu homólogo, Emmanuel Macron, após sua reeleição no mês passado. A motivação oficial é buscar investimentos e acordos energéticos com os países europeus dado o contexto da guerra na Ucrânia e a crise energética desatada em diversos países. A Argentina possui um grande reservatório de gás não convencional chamado Vaca Muerta, na Patagônia.
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No entanto, a visita também é vista como uma espécie de "busca por respiro" da disputa interna em seu governo, segundo apontaram fontes da ala kirchnerista a diversos meios argentinos na última semana. Além disso, a priorização da agenda internacional em uma semana turbulenta para sua equipe de economia, com o Ministro Martín Guzmán na linha de frente, foi considerada chamativa.
Na próxima quinta-feira (12), serão divulgados os dados de inflação de abril, entre expectativas não tão otimistas, o que será decisivo para o governo no contexto da visita do FMI também neste mês. Especula-se que haverá desaceleração, mas lenta, em relação ao último índice de inflação mensal, que apontou para 6,7% em março pelo Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec).
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Frustração dos votantes
Na última sexta-feira (7), Cristina Kirchner discursou durante duas horas na cerimônia pelo título de Doutora Honoris Causa que recebeu pela Universidade Nacional de Chaco Austral. Na ocasião, falou pela primeira vez sobre as repercussões dos conflitos internos de sua coalizão e repassou seu posicionamento de que o erro do governo está na política econômica. "Não estamos honrando a confiança que depositaram em nós", disse, ao finalizar sua exposição.
No entanto, em seu discurso a vice-presidenta também reafirmou sua escolha de Alberto Fernández, tradicional crítico dos governos de Cristina, como candidato à presidência para garantir a eleição. "Não foi uma decisão erroneamente generosa. Foi inteligente", afirmou.
Indagado sobre a declaração de Kirchner na entrevista ao El País, Alberto Fernández remeteu à sua sugestão, nas últimas eleições, de que a coalizão fosse às primárias abertas com diferentes listas. No processo eleitoral argentino, os partidos podem lançar diferentes listas com candidatos para que seu próprio espectro político escolha o candidato final.
Na última eleição legislativa, no ano passado, a FdT apresentou uma lista única. "Naquele momento, me criticaram muito. Agora, vejo com alegria que esse debate é bem-vindo.", disse.
"Tenho um enorme respeito pela Cristina", continuou Fernández. "Ela representa algo significativo na história, e é líder de um espaço importante no presente. Mas há coisas nas quais não compartilho de sua visão. Além disso, fui publicamente crítico com sua gestão de governo. Todo mundo sabe que tenho uma perspectiva diferente. Respeito o que ela diz, mas peço que respeitem o que eu digo."
A viagem de Fernández deve ser concluída na sexta-feira (13), quando já serão conhecidos os índices de inflação do país do mês de abril.
Edição: Thales Schmidt