"Você consegue pensar em alguma lei que dê ao governo o poder de tomar decisões sobre o corpo masculino?". Foi com essa pergunta que a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, então no cargo de senadora, se dirigiu a Brett Kavanaugh, quando o juiz foi apontado por Donald Trump para uma vaga na Suprema Corte dos Estados Unidos.
O silêncio da resposta de Kavanaugh gritava o que vinha pela frente: uma onda conservadora na maior instância da justiça dos Estados Unidos. De fato, quatro anos após o embate, cujo vídeo voltou a viralizar, o país está prestes a ter revogada a decisão conhecida como Roe vs Wade, que garante que o acesso da mulher ao aborto é um direito federal.
Segundo um documento vazado na semana passada, os juízes da Suprema Corte pretendem deixar a jurisdição do aborto na mão dos estados.
"Ou seja, se as coisas se confirmarem como tudo indica, teremos 25 estados interrompendo o acesso das mulheres ao aborto e outros 25 estados que vão autorizar a autonomia feminina", comenta o pesquisador e escritor David Garrow. "Isso tem várias implicações políticas, a começar pelo fluxo de mulheres dos chamados 'estados vermelhos' [republicanos]".
De acordo com Garrow, mulheres ricas e de classe média não devem ter muita dificuldade em pegar um avião e se deslocar a um estado liberal, como a Califórnia, onde o procedimento abortivo deve continuar à disposição das interessadas. "Mas a maioria das americanas que precisam do aborto são mulheres pobres, que muitas vezes vivenciam situações delicadas no contexto doméstico e não necessariamente têm um carro na garagem", completa.
Uma das maiores autoridades no assunto, a professora de sociologia da Universidade de Berkley, Kristin Luker, concorda. "Diferente do que muita gente pensa, cerca de 60% de todas as mulheres que abortaram já são casadas, têm filhos, são de baixa renda. E se você perguntar por que elas estão fazendo isso, elas mencionam seus compromissos com outras pessoas. Elas não são egoístas, não são irresponsáveis. São mulheres que dizem: 'eu tenho que cuidar dos filhos que eu tenho, e não posso ter mais um'; ou então 'meus filhos finalmente estão na escola e agora eu tenho tempo para cuidar dos meus pais'. Então, curiosamente, a escolha pelo aborto é um ato profundamente moral", discorre a professora em entrevista ao Brasil de Fato.
Sem papas na língua para falar deste assunto, Luker confessa que não está nem um pouco surpresa com a provável decisão da Suprema Corte. "O juiz [Samuel] Alito, lá na década de 1980, antes mesmo de ser apontado para a Suprema Corte, escreveu um memorando dizendo 'não vamos derrubar [o aborto] diretamente' porque isso levanta questões jurisprudenciais; vamos entregá-lo aos estados. E vamos mordiscá-lo e torná-lo cada vez mais difícil de conseguir".
A "previsão" do juiz Alito vem se concretizando. O Texas basicamente inviabilizou o aborto meses atrás, ao instituir uma lei que apenas autorizava o procedimento dentro de alguns dias — sendo que mulheres demoram semanas ou meses para saber da gravidez.
Isso vai afetar milhares de vidas, todos os anos. As estimativas variam, mas há quem diga que 630 mil procedimentos abortivos são feitos todos os anos nos Estados Unidos, mas dependendo dos parâmetros, esse número pode subir para 886 mil procedimentos abortivos anuais.
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A interrupção da gravidez é um procedimento custoso. Uma pílula abortiva, que representa pouco mais da metade do total dos procedimentos, era vendida por US$ 560, cerca de R$ 2.850,00, em 2020. O valor é muito além do que uma família de baixa renda pode pagar, já que um terço das famílias americanas não seriam capazes ou teriam dificuldade em pagar uma despesa de emergência de US$ 400.
Mas nada disso importa para quem quer revogar a autonomia da mulher sobre o seu próprio corpo, alegando ser "a favor da vida" — e esse discurso não vem apenas dos religiosos, como era de se esperar.
"Curiosamente, há outro eleitorado, que são os plutocratas neoliberais. Essas são as pessoas que historicamente se opuseram aos sindicatos. Eles se opuseram a qualquer tipo de regulamentação. Eles querem encolher o estado de bem-estar. Eles querem tornar a votação mais difícil. Eles querem proteger o capital. E é meio que embutido na ideologia neoliberal que você não pode ter o mercado, como você faz no neoliberalismo, sem a moralidade tradicional agindo como seu próprio pequeno estado de bem-estar, para equilibrar o que está acontecendo no mercado", explica Luker.
Essa avalanche conservadora, com sotaque religioso e tendências neoliberais, também se faz presente na Suprema Corte. "Esses juízes são um produto da presidência de Donald Trump", lembra Garrow, "não importa o que você pensa dele, mas é fato que os três juízes nomeados pelo governo Trump vêm desse movimento jurídico conservador, que avança nos EUA nos últimos 20, 25 anos".
Edição: Thales Schmidt