Na última segunda-feira (9), celebrou-se na Rússia o Dia da Vitória, feriado nacional que lembra o êxito das tropas soviéticas sobre a Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial.
Nos últimos anos, a comemoração tem servido como plataforma para Vladimir Putin promover valores nacionais defendidos por seu governo. No contexto da guerra na Ucrânia, que ultrapassa a marca de 75 dias sem apresentar ganhos claros, a data comemorativa ganhou uma importância vital para o Executivo russo.
É na gestão de Vladimir Putin, no início dos 2000, que o Dia da Vitória recupera valores ligados à simbologia militar da União Soviética, algo que havia sido anulado logo depois do fim da URSS com a presidência de Boris Yeltsin nos anos 1990.
Ao Brasil de Fato, o historiador Rodrigo Ianhez, especialista no período soviético, comenta que, com Putin, o Dia da Vitória se torna o principal feriado do país.
“É o principal feriado da Rússia e é claro que ele é utilizado de maneira ideológica, de maneira propagandística, não tem a menor dúvida. É uma propaganda do regime putinista, valores que o regime putinista considera como valores apropriados para a Rússia atual”, destaca.
Em seu discurso, Putin declarou que a defesa da Rússia, “quando seu destino estava em jogo, sempre foi sagrada”, acrescentando que, assim como “no passado”, os soldados da Rússia na Ucrânia lutam pela segurança do país e pelo povo russo em Donbas.
“Mas somos um país diferente. A Rússia tem um caráter diferente. Jamais abriremos mão de nosso amor pela pátria, por nossa fé e valores tradicionais, pelos costumes de nossos ancestrais e o respeito a todas as populações e culturas", disse o presidente russo.
Reforço da retórica civilizacional
A situação atual da guerra na Ucrânia fez com que a comemoração de uma data militar tão importante na história da Rússia criasse uma grande expectativa sobre o discurso do presidente russo, que dedicou a maior parte da sua fala ao atual conflito no país vizinho, justificando a operação militar.
Por um lado, especulou-se que, pressionado por não apresentar êxitos militares substanciais em mais de dois meses de conflito, Putin poderia anunciar uma intensificação dos combates no leste da Ucrânia, na região de Donbas. Seria uma forma de garantir o controle nas regiões separatistas pró-Rússia e apresentar alguma vitória no 9 de maio. Isto representaria um aceno para o retorno às negociações e um abrandamento dos combates, sobretudo após o recuo das tropas russas dos arredores de Kiev.
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Por outro lado, o secretário de Defesa britânico, Ben Wallace, havia declarado que "não ficaria surpreso" se Putin dissesse que a Rússia estaria agora "em guerra com nazistas de todo o mundo" e anunciasse a necessidade de um recrutamento em massa. Isso aconteceria a partir de uma declaração oficial de guerra contra a Ucrânia.
Isso foi amplamente repercutido na mídia, sobretudo dos EUA e da Ucrânia. Tal mobilização representaria uma intensificação do conflito em busca do controle de mais territórios ucranianos.
Cercado de especulações, o discurso de Putin não teve anúncio de mobilização em massa como resultado de uma declaração de guerra, tampouco anúncio de conquista de territórios. A fala do presidente russo, no entanto, não poupou críticas ao Ocidente, em particular à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e aos EUA, pela atual conjuntura no Leste da Europa.
O historiador Rodrigo Ianhez observa que, para aqueles que esperavam algum posicionamento drástico sobre os rumos do conflito na Ucrânia, Putin fez uma fala sem surpresas e menos inflamada do que em outras ocasiões recentes. O analista destaca, entretanto, que o líder manteve uma retórica de confrontação com o Ocidente, reforçando o aspecto civilizacional do conflito com a Ucrânia.
“Há esse elemento de tratar essa guerra como algo além da Ucrânia. Ele faz isso apontando a responsabilidade da Otan e o apoio que a Aliança militar tem prestado aos ucranianos como um conflito de civilizações. Isso está claro nesse discurso que ressalta os valores tradicionais em oposição a valores decadentes do Ocidente”, afirma.
Segundo o historiador, o próprio presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, usa uma retórica semelhante a partir da perspectiva oposta.
Ao se pronunciar sobre o Dia da Vitória, Zelensky fez duras críticas à Rússia e à intervenção de Vladimir Putin em seu país. De acordo com ele, "esta não é uma guerra de dois exércitos, é uma guerra de duas visões de mundo". E continuou: "Eles têm medo de nossa filosofia — que somos pessoas livres, seguindo nosso próprio caminho. Temos orgulho de nossos ancestrais e não permitiremos que ninguém se aproprie dessa vitória", afirmou o líder ucraniano.
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Para Ianhez, ambos os lados vão usar referências históricas e tentar utilizar o discurso nacionalista já consagrado nos dois países como retórica de guerra.
“Então há esse aspecto (civilizacional), pelo menos na retórica. E a gente espera, é claro, que fique na retórica, já que um conflito direto entre Rússia e Ocidente seria uma tragédia em um nível global”, acrescenta.
Mesmo sem alcançar o amplo controle da região de Donbas, Putin manteve o discurso de que “todos os planos estão sendo implementados e o resultado será alcançado”.
"Se houvesse uma única oportunidade de resolver este problema (Donbas) por outros meios pacíficos, é claro que aceitaríamos, mas eles não nos deixaram esta opção, simplesmente não nos deram", disse o presidente russo.
O cientista político Serguey Markov afirma que a fala de Putin no desfile militar em Moscou mostrou foco na “operação especial militar”, reforçando a retórica do Kremlim de que não se trata de uma guerra contra o Estado da Ucrânia.
O analista, que já atuou como assessor do presidente russo, observa que militares que atuaram diretamente no confronto em Donbas participaram da parada militar de 9 de maio, o que revela um estreitamento do vínculo entre os atuais combates com a Ucrânia e as motivações patrióticas do passado.
Ao comentar os objetivos da operação russa explicitados pelo presidente russo, Markov afirma que uma das conclusões que podem ser tiradas do discurso do mandatário é de que “a operação militar era absolutamente inevitável”.
“O objetivo principal é proteger a Rússia da inevitável agressão futura. O objetivo principal agora é Donbas. Os principais inimigos são os neonazistas e apoiadores de Bandera [ultranacionalista ucraniano], a Otan e os EUA”, afirma Markov em publicação nas redes sociais.
A posição do cientista político e ex-deputado russo reflete o pensamento de uma parcela significativa da população e justifica as ações do Kremlin. Segundo ele, “a população da Rússia está chocada com o fato de que todos os países que fizeram história nos últimos séculos se voltaram contra a Rússia”. E completa: “Parece que toda a civilização ocidental está contra a Rússia”.
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A conclusão de Markov é de que "a grande maioria dos russos está convencida de que estamos certos. A verdade está conosco. E europeus e americanos estão errados”.
Nacionalismo segue em alta: até quando?
Os principais objetivos da operação militar anunciados pela Rússia em 24 de fevereiro foram a “desmilitarização” e a “desnazificação” da Ucrânia. Neste sentido, o presidente russo aproveitou a data comemorativa da Segunda Guerra Mundial — ou a Grande Guerra Patriótica, como é chamada na Rússia — para estabelecer paralelos com a atual guerra na Ucrânia e ressaltar valores nacionalistas.
No entanto, diante da falta de êxitos militares concretos, fica a incógnita se o sentimento de patriotismo bastará para manter a aprovação das ações de Putin no país vizinho.
“Acho que tudo vai depender dos resultados. Se Putin conseguir cumprir alguns dos seus objetivos e conseguir dar sentido a eles em uma narrativa que trace esses paralelos entre a Grande Guerra Patriótica e a guerra que agora está sendo travada com a Ucrânia, quem sabe essa narrativa não se consagre, pelo menos enquanto o putinismo resistir na Rússia”, destaca Rodrigo Ianhez.
Por outro lado, o historiador afirma que o sentimento de nacionalismo que Putin resgatou no Dia da Vitória pode ser abalado “se essa guerra continuar se arrastando, as sanções continuarem sufocando a economia russa e a condição de vida das pessoas for afetada a um ponto que a popularidade de Putin também comece a ser impactada ”.
Edição: Arturo Hartmann