Coluna

A nova razão da favela: da cidadania ao empreendedorismo

O outro lado deste dispositivo neoliberal são as narrativas e políticas que criminalizam os movimentos sociais que lutam por direitos e silenciam os contestadores da ordem urbana excludente - MÍDIA NINJA
Tudo isso vem ocorrendo em um contexto de desmonte de políticas sociais e urbanas

Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro* e Demóstenes Andrade de Moraes**

 

O grande sociólogo francês Robert Castel ao escrever nos anos 1980 a genial crônica sobre as metamorfoses do salariat na longa duração, assim definiu a questão social: “Uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade para existir como um conjunto ligado de relações de interdependência” (CASTEL, 1998, p.30).

Ou seja, as sociedades constroem periodicamente um conjunto de ideias, crenças, noções e conceitos que explicam as falhas de funcionamento dos seus mecanismos de integração societária e idealizam caminhos para lidar com os riscos de desarticulação social. Portanto, os enunciados da questão social em cada momento histórico contêm simultaneamente diagnósticos que enunciam, legitimam e explicam por aporias os problemas sociais e identificam os modelos de ação que a coletividade deve assumir para restaurar a coesão.

Duas conclusões decorrem desta definição. A primeira é que há uma relação de mútua determinação entre como os problemas sociais são explicados e o desenho das políticas de conjuração, sejam elas de inciativa do Estado ou dos atores e instituições da sociedade. A segunda é que a formulação da questão social estará sempre atravessada pelas relações e conflitos de classe, o que significa dizer a inevitabilidade de uma tensão entre reprodução e contestação da dominação, dependendo das correlações de força nas lutas pela representação legítima do mundo social.

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É com este olhar que podemos interpretar a emergência (e a sua força) da nova aporia sobre a favela baseada no dispositivo discursivo “favela holding”, “favela empreendedora”. Nova linguagem, novas instituições e novos atores reconstroem a questão da favela, historicamente reconhecida na aporia “favela-cidadania”, “favela-desigualdade”, “favela-exclusão”.

Estas reflexões nos surgiram em razão de duas colunas assinadas na Folha de São Paulo por Preto Zezé, empreendedor, produtor artístico e musical e presidente nacional da Central Única das Favelas, sob os títulos de “O encontro de dois Brasis” (4 de abril de 2022) e “Um encontro de negócios entre a favela e o asfalto” (11 de abril de 2022).

São duas narrativas construídas em torno da questão da favela como resultante da ausência de reconhecimento e de apoio da capacidade empreendedora da sua população. O segundo artigo está escrito como uma espécie de libelo a respeito da realização do megaevento Expo Favela organizado pela Favela Holding associada a uma grande quantidade de empresas. Segundo Preto Zezé, o evento já teria mais de 200 mil inscritos, um indicador da existência da dinâmica empreendedora das favelas, fato desconhecido e invisível para o outro Brasil. A proposta é apresentada como uma iniciativa para “unir a favela ao asfalto”.

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Será que entramos definitivamente na fase da favela como questão do mercado e não mais de política pública/cidadania? Tal era a nossa hipótese quando refletimos sobre os deslocamentos discursivos sobre a questão da favela à época dos megaeventos, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Mas, naquela época o dispositivo semântico era do turismo étnico, no qual a paisagem da favela era apresentada como uma distinção do lugar capaz de constituir uma vantagem competitiva no mercado global de turismo. E a isto correspondia a uma forte alteração dos preços e da dinâmica imobiliária.

Agora o dispositivo funda-se no discurso do empreendedorismo popular (étnico também?), o que deve estar mudando as representações dos moradores das favelas da sua posição no espaço social da cidade e alterando suas disposições de ação. Ao invés das lutas por direitos, novas crenças e agenciamentos empreendedoristas do seu histórico “se vire”, expressão da combinação perversa entre exclusão e opressão estatal e societária às camadas populares.

O empreendedorismo é agora evidenciado, também, por quem vive ou viveu nas favelas e atuais promotores devotos do ideário neoliberal, como única e glamourizada “saída” socioeconômica para os espoliados. Nada é mencionado neste dispositivo que permite contestar as opressões e discriminações históricas. Mas, se algum empreendimento “não der certo”, a responsabilidade será de quem não “empreendeu” ou se esforçou o suficiente?

Tudo isso vem ocorrendo em um contexto de desmonte de políticas sociais e urbanas, de fortalecimento de políticas fundadas na competitividade das cidades que devem ser pensadas antes de tudo como empreendedoras de negócios (e as favelas, agora também). O outro lado deste dispositivo neoliberal são as narrativas e políticas que criminalizam os movimentos sociais que lutam por direitos e silenciam os contestadores da ordem urbana excludente que buscam evidenciar a formação de uma crise urbana estrutural, com o colapso da função da cidade na provisão das condições ligadas às necessidades de reprodução da vida biológica, social e individual, afetando mais severamente as condições de vida nas favelas e outros assentamentos precários nas cidades.

Faz pensar. Se uma das dificuldades históricas da construção social da questão urbana nas cidades brasileiras foi articular os problemas da cidade com o mundo do trabalho (sua sociabilidade, imaginário, necessidades, reivindicações e lutas) o dispositivo do empreendedorismo a inviabiliza completamente. Ao mesmo tempo, faz penetrar a “governamentalidade” neoliberal como um dos mecanismos de controle social das camadas populares e vias de se transformarem em massa marginal, sendo o outro mecanismo a prática do “urbanismo militar carioca”, já difundido para outras cidades, fundado na conquista de territórios por milícias.

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Os dois dispositivos bloqueiam a construção do conflito, segregam as camadas populares da política e garantem a manutenção no poder da oligarquia rentista-extrativista e suas práticas de acumulação por despossessão, sem contestação.

O empreendedorismo urbano “popular” parece, assim, cumprir a missão de bloquear, com dissimulações e falsas promessas, as potenciais revoltas, lutas e insurgências pelas transformações estruturais necessárias à emancipação das camadas populares a partir das favelas. Mas, movimentos, coletivos, ativistas e militantes pela Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade continuam nas lutas pela construção da cidade do bem-estar, da cidadania e da emancipação dos historicamente espoliados e, ao invés de “promovê-las” como espaços mercantilizados dos negócios em eventos como o Expo Favela, pretendem o seu reconhecimento como territórios de direitos e de cidadania.

Isso poderia se dar a partir da construção de políticas públicas territoriais multidimensionais integradas (considerando várias dimensões e setores, como saúde, educação, cultura, saneamento, mobilidade, meio ambiente, defesa civil, segurança etc.), tendo os moradores destes como protagonistas a partir de sistemas de cogestão, reconhecendo e aproveitando o que já existe nas favelas, as iniciativas culturais, formativas, cooperativas, desportivas, econômicas etc.

Estas alternativas e outras propostas para a reconstrução nacional a partir da Reforma Urbana serão discutidas na Conferência Popular pelo Direito à Cidade (3, 4 e 5 de junho de 2022, em São Paulo), que já conta com a adesão de mais de 400 entidades e movimentos de todo o Brasil, como um contraponto à cidade mercantilizada para o lucro. Também serão traduzidas em livros que estão sendo elaborados pelos pesquisadores do Observatório para cada uma das 16 metrópoles que integram o nosso programa de pesquisa em rede, como contribuição ao avanço do projeto da Reforma Urbana e do Direito à Cidade.

 

*Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é Coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles. Professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).

**Demóstenes Andrade de Moraes é Pesquisador do Núcleo Paraíba do INCT Observatório das Metrópoles. Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

***Nota dos autores: No título estamos nos referindo à proposição de Pierre Dardot e Christian Laval sobre o neoliberalismo como mudanças mais profundas na sociedade capitalista para além da ideologia, da crença e do estado de espírito. “O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. Além disso, devemos deixar claro que esse sistema é tanto mais ‘resiliente’ quando excede em muito a esfera mercantil e financeira em que reina o capital. Ele estende a lógica de mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade ‘contábil’ pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos”. Dardot, P., Laval, C. A Nova Razão do Mundo, São Paulo, 2016, p. 30.

****Há mais de 20 anos o INCT Observatório das Metrópoles vem trabalhando sobre os desafios metropolitanos colocados ao desenvolvimento nacional através da sua rede de pesquisa, organizada em 16 núcleos regionais. No contexto da atual crise econômica, social e sanitária, suas respectivas consequências presentes e futuras podem ser elementos mobilizadores para a construção de uma contra narrativa progressista e redistributiva para o país. Esta coluna se relaciona com os esforços atuais da nossa rede de reflexão e incidência sobre o tema, a partir do projeto "Reforma Urbana e Direito à Cidade nas Metrópoles". Leia outros artigos aqui

*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante