A pesquisa provocou uma mudança brusca no meu modo de cozinhar: mais simples, natural e sustentável
Quais as práticas alimentares e alimentos mais consumidos pelas comunidades quilombolas de São Paulo? Essa pergunta puxa a pesquisa da chef de cozinha e professora universitária de gastronomia Aline Guedes. Após desenvolver e conhecer a realidade da alimentação quilombola paulista, ela tem ampliado a sua pesquisa e conhecido outros quilombos fora do estado de São Paulo. O estudo de Aline Guedes também está transformando a cozinha dela.
“Desde que comecei a pesquisa, a minha cozinha mudou completamente, ela me permitiu um novo olhar para gastronomia que até então era eurocêntrica, pois estudei em uma escola com bases francesas. O desenvolvimento da pesquisa provocou uma mudança brusca e potencializou o meu modo de cozinhar, para uma forma mais mais simples, mais natural, mais sustentável e conectando o que temos hoje com o passado”, afirma a docente.
Nascida e criada na periferia de São Paulo, Aline teve a mãe, que era empregada doméstica, como referência na cozinha. Quando fez faculdade, há quase 20 anos, a pesquisadora era a única aluna negra no curso de gastronomia. Agora, como professora, ela ensina em sala de aula uma perspectiva decolonial na gastronomia, o que significa dizer que é preciso ampliar o olhar sobre a alimentação para além dos conceitos eurocêntricos.
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Aline levou essas influências da alimentação quilombola e das religiões de matrizes africanas para o programa de TV ‘Mestre do Sabor’ o prato de entrada com uma receita de peixe assado na folha de couve com palmito pupunha ao molho bobó.
“Houve toda uma intenção de mostrar a nossa afrobrasilidade. Fiz um molho amarelado para representar a orixá, Oxum. Também usei ingredientes naturais e de plantas alimentícias não convencionais que é algo que encontra bastante nos quilombos do país e até no prato que era preto, para representar a nossa como cor povo preto”.
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Luta pela terra e pelo alimento tradicional
Um dos maiores problemas que as populações quilombolas enfrentam ao longo de séculos é a regularização fundiária. Essas comunidades lutam pelo direito de propriedade de suas terras consagrado pela Constituição Federal desde 1988. Nos quilombos se mantêm vivos os saberes tradicionais e a alimentação é um dos fatores importantes para proteção da cultura quilombola.
“O racismo ambiental é uma ameaça na produção de alimentos nas comunidades quilombolas, mas também na preservação cultural, na forma de comer e preparar os alimentos. Há não só a exploração e invasão desses espaços, mas também essa necessidade constante de apagar uma cultura, um povo e até de dizimá-lo. É muito triste pensar que para que haja sobrevivência é preciso que eles estejam sempre resistindo, sendo que esse é um direito de todos”.
Ela lembra que o primeiro ponto importante é a diversidade da alimentação, pois não é uma alimentação única, mas tem particularidades de acordo com a região onde está localizada a comunidade. “Os alimentos mais consumidos em comunidades quilombolas do Nordeste vão ser diferentes das comunidades do Sudeste do país. A maior parte desses alimentos são mais naturais, quando possível orgânicos, provenientes da terra, com ingredientes que são mais facilmente encontrados no território, de acordo com a sazonalidade e o potencial de plantio e colheita desses insumos”.
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A professora de gastronomia comenta que o alimento é transformador, pois abrange diversos aspectos sociais, históricos, políticos, culturais e também os afetos, pois potencializa vínculos e relações.
“As formas como nós comemos, cozinhamos, e compartilhamos afetos por meio do alimento, é resultado do que repetidamente foi executado pelas nossas mães, avós e tias e aí percebemos que a alimentação está ligada a nossa ancestralidade", relata Aline que diz que por meio da pesquisa resgatou a sua cultura e a sua ancestralidade.
Segundo a Fundação Palmares existem hoje no Brasil quase quatro mil comunidades quilombolas distribuídas em 24 estados do país. Em sua origem, as comunidades quilombolas eram formadas por pessoas negras escravizadas, que conseguiam fugir de cativeiros e formavam os quilombos.
Edição: Daniel Lamir