Retirado da proposta original do Auxílio Brasil aprovada no Congresso Nacional, o empréstimo consignado voltou a fazer parte do programa por meio da Medida Provisória 1.106, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que pode ser votada nesta semana no Senado. A modalidade também será estendida a quem recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e pode comprometer até 40% do valor recebido, de acordo com o texto enviado pelo governo.
A historiadora e pesquisadora dos programas de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e da Casa de Oswaldo Cruz - COC/Fiocruz, Denise De Sordi, destaca que quando essa modalidade de crédito foi regulamentada, pela Lei nº 10.820 de 2003, originalmente se restringia a uma parcela do funcionalismo público. Agora, ela se desvincula definitivamente do aspecto renda/salário.
"Isso indica um dos objetivos do Auxílio Brasil, um programa de financeirização do acesso a direitos sociais, representando um desmanche completo das políticas do setor. É péssima a associação de disponibilização do crédito consignado porque temos um cenário de endividamento das famílias se desenhando no longo prazo", pontua, em entrevista ao Jornal Brasil Atual.
Ela lembra que esta é uma proposta atrelada às trocas nos cartões e às possibilidades de uso já ampliadas pelo aplicativo de cadastro, o Caixa Tem. "Isso coloca a perspectiva de uma transferência direta, infelizmente, de recursos do governo que estariam voltados para atender pessoas em situação de extrema pobreza e pobreza, mas que no fundo vão para os bancos, elites econômicas e agências financeiras."
O argumento de que o dinheiro poderia ser usado para movimentar a economia também é contestado pela pesquisadora. "O governo tem alegado que esta seria uma boa medida porque desafogaria a demanda de consumo imediato das famílias, mas não há certeza de como os empréstimos serão regulados e é bom pensarmos também que muito provavelmente, pelos dados que temos disponíveis, esse dinheiro será utilizado para comprar itens básicos", aponta. "As pessoas vão se endividar para compensar um cenário de desemprego, de inflação, de alta dos alimentos, e depois vão ficar com essa dívida para ser paga. É no mínimo cruel essa proposta."
Sem porta de saída no Auxílio Brasil
Denise De Sordi ressalta ainda que uma das questões trabalhadas em meio à discussão sobre o Bolsa Família e suas possibilidades de aprimoramento era a de ampliar a chamada "porta de saída" que permitiria ao beneficiário sair da condição de pobreza e extrema pobreza. O programa contava com condicionantes que possibilitavam o acesso a direitos relativos a áreas como saúde e educação, o que deixou de existir no Auxílio Brasil. "É importante dizer que não está mais se falando de saída do programa, de melhora das condições de vida, quando se pensa no endividamento de longo prazo vinculado a um programa social que teria outro objetivo", pondera.
A historiadora também analisou a fila de 1,3 milhões de famílias à espera de receber o Auxílio Brasil em março, de acordo com dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), em estudo divulgado nesta segunda-feira (16) pelo jornal O Estado de S. Paulo. "A forma como foi planejada a transição de um programa para o outro foi bastante obscura, já que não havia dados disponíveis, o CadÚnico, que é o sistema de cadastramento dos governos do programa federal, estava paralisado", recorda.
"É uma situação terrível, além desse número, que é estimado, se fala também da permanência de uma 'fila da fila', pessoas que nem conseguiram acessar ainda os trâmites para realizar o cadastro para ter ou não o benefício. E a maioria das pessoas está na fila muito por conta de um processo de desmanche dos mecanismos de busca ativa da assistência social, que poderiam fazer o atendimento", afirma.
Confira a íntegra da entrevista abaixo:
Edição: Glauco Faria