A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) entrou em vigor há um década para cumprir alguns princípios constitucionais considerados essenciais em qualquer democracia. Entre eles estão o da transparência pública e o próprio direito à informação, este último classificado como um direito fundamental pela Carta Magna e por diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. A norma consagrou a máxima da publicidade como regra e o sigilo como exceção.
Especialistas ouvidos pela reportagem consideram que a LAI, como também ficou conhecida, foi um divisor de águas na cultura de transparência da administração pública, que mudou bastante, para melhor, desde que a legislação entrou em vigor, no dia 16 de maio de 2012.
De acordo com a Controladoria-Geral da União (CGU), o número de pedidos de informação recebidos, apenas no âmbito do governo federal, soma mais 1,1 milhão. Em média, levam cerca de 15 dias para serem respondidos. Os órgãos mais demandados são Ministério da Economia, Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), Ministério da Cidadania e Ministério da Saúde.
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Além de permitir a qualquer cidadão ou pessoa jurídica o acesso a dados antes omitidos, a lei determinou que os órgãos de diferentes instâncias de governo passassem a dar visibilidade a informações consideradas de interesse público, independentemente de solicitações (a chamada transparência ativa).
"O primeiro grande avanço foi o fim do sigilo eterno. A gente acabou com essa ideia do sigilo eterno, ainda que estejamos vendo um sobreuso desses dispositivo nos últimos anos. A lei também criou fluxos para o seu funcionamento, para a estruturação dos sistemas de informação. Mas, sobretudo, a LAI veio para mostrar que não existe democracia sem verdade, sem transparência, sem direito à informação. Não à toa, a lei foi promulgada junto junto com a Comissão Nacional da Verdade, em novembro de 2011", destaca Júlia Rocha, coordenadora da Área de Acesso à Informação e Transparência da organização Artigo 19, entidade da sociedade civil que atua na promoção da liberdade de expressão e do direito à informação em diferentes países.
Fazendo a diferença
Dados obtidos pela Fiquem Sabendo, uma agência de dados independente especializada na LAI, por exemplo, dão uma dimensão da importância da legislação para a vida democrática do país. É o caso da revelação de que mais de 19 mil pessoas foram resgatadas de situação de trabalho análogo a escravidão, entre 2011 e 2021. Durante a pandemia de covid-19, a LAI também foi um importante instrumento da sociedade civil para cobrar a divulgação de informações por parte dos governos.
Em 2016, uma série de reportagens publicadas pelo do jornal O Globo, com dados também obtidos pela LAI, mostrou casos em que centenas órgãos e tecidos humanos, que seriam usados em transplantes, acabaram sendo perdidos por falta de transporte público aéreo imediato. O episódio fez com que o governo federal editasse uma medida para que aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB) ficassem permanentemente de prontidão para atender esse tipo de emergência em qualquer parte do país, em tempo integral.
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"A LAI criou sim uma cultura nova, porque hoje é muito mais difícil você negar informações. Aos poucos, os servidores foram perdendo o medo de disponibilizar dados, até porque não existia a mesma segurança que a lei deu", avalia o advogado Bruno Morassutti, mestre em direito e especialista em direito público e processo civil, co-fundador da agência Fiquem Sabendo, e que atua como consultor e ativista em transparência pública e dados abertos.
Avanços
Nem sempre foi assim. Nos primeiros anos da legislação, um conceito denominado "transparência de mão dupla" dificultava a consulta sobre a remuneração de servidores públicos. Havia a exigência de que o solicitante se identificasse e fizesse cadastro prévio de seus dados para obter a informação. Com isso, o servidor tinha acesso sobre quem consultou o salário. Essa exigência caiu em 2016, mas só a partir de 2018, por meio da plataforma Fala.BR, qualquer cidadão passou a poder solicitar informações sem precisar sequer se identificar.
"Essa questão dos pedidos anônimos, que já representam cerca de 20%, foi um avanço importante. Porque uma série de levantamentos já mostrava uma certa prática discriminatória na concessão de informações a determinados grupos de solicitantes, como jornalistas, por exemplo", explica Luma Poletti, doutora em comunicação e pesquisadora do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).
Apesar do expressivo número de pedidos de informação recebidos, nem todos são atendidos. Segundo a CGU, cerca de 30% ficam sem resposta. Alguns são parcialmente atendidos, outros têm acesso negado por causa de informação restrita e outros são descartados por não se tratarem de pedido de acesso à informação, na avaliação do órgão.
Em seus artigos 23 e 24, a LAI define que tipo de informações "imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado" são passíveis de classificação e quais os prazos máximos de restrição. As informações ultrassecretas, por exemplo, terão sigilo de 25 anos.
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As classificadas como secretas, o tempo de sigilo é de 15 anos. Já as informações reservadas têm sigilo de 5 anos. As informações que puderem colocar em risco a segurança do presidente e vice-presidente da República e respectivos cônjuges e filhos serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
Obstáculos
Embora tenha dado uma espécie de salto civilizatório na cultura de transparência da administração pública, a LAI ainda enfrenta importantes obstáculos e ameaças à sua efetividade.
Uma delas é justamente sua disseminação pelos diferentes entes da federação. A lei previu que estados e municípios deveriam regulamentar sua aplicação, mas cerca de 86% dos municípios, o que dá mais de 4,8 mil administrações locais, até hoje não regulamentaram a norma, segundo levantamento da plataforma Regulamenta LAI, com base em dados do monitoramento Escala Brasil Transparente – Avaliação 360º, realizado pela CGU.
"Na gestão municipal, é muito mais difícil fazer valer questões envolvendo transparência, talvez porque não sejam muito bem pulverizadas as formas de fazer acontecer o direito à informação. Agora, nos governos estaduais eu já acho que tem a ver com falta de orçamento, de treinamento e de vontade política mesmo", aponta Júlia Rocha.
Para Bruno Morassutti, há uma disparidade no entendimento sobre dados entre os entes federativos. "No caso dos estados, existe um desentendimento e falta de uniformidade sobre o que se pode acessar ou não, em termos de dados. Temos até hoje casos de estados que não divulgam a lista de pessoas inscritas em dívida ativa. Já outros permitem acesso à lista completa, por exemplo". Além disso, acrescenta, ainda há um problema crônico na forma de organizar e fazer a gestão dos dados públicos no país.
"A informação precisa estar organizada para que possa ser fornecida. Não é fácil dar cumprimento à LAI, porque muitos estados e municípios não gerenciam as informações como deveriam. Os atendimentos, muitas vezes, são traumáticos para os órgãos, que precisam organizar aquela informação para poder disponibilizá-la", analisa.
Outra dificuldade enfrentada pela lei tem a ver com a falta de fiscalização, como a definição de um órgão superior que possa monitorar e cobrar o cumprimento da norma. No governo federal, desde o início a CGU cumpre esse papel, mas na maioria dos estados e municípios não há uma configuração similar.
"Cada nível da administração, cada governo estadual ou prefeitura regulamenta a LAI no seu âmbito, à sua maneira. Cada um cria um tipo de método de avaliação, e faz isso numa intensidade que varia bastante entre um ente e outro", observa Luma Poletti.
Ameaças
No plano das ameaças, a LAI chegou a sofrer algumas pressões nos últimos anos. Em 2019, um decreto do governo federal ampliou o rol de autoridades que teriam competência para classificar de informações públicas nos graus de sigilo ultrassecreto ou secreto. Após forte repercussão negativa, o Congresso Nacional derrubou o decreto.
Em 2020, uma Medida Provisória (MP) assinada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), no contexto da pandemia, previa a suspensão dos prazos de resposta enquanto durasse a emergência em saúde pública. Esse trecho da MP acabou sendo invalidado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), após ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
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Outro ponto de conflito que surgiu nos últimos anos é o uso da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para negar informações públicas. Um levantamento da agência Fiquem Sabendo, feito no ano passado, identificou 79 pedidos de acesso à informação feitos a órgãos públicos federais e negados com base na LGPD.
Metade desses pedidos negados acabaram sendo revertidos pela CGU e pela Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI), mas outros tiveram a negativa mantida. Argumentos similares também têm sido usados por órgãos de outros poderes, além de estados e municípios, para negar pedidos de informações.
"O que temos percebido existe uma má aplicação da LGPD sobre a LAI. A leitura de ambos os marcos jurídicos deve ser feita em conjunto. A privacidade tem tudo a ver com a transparência pública. Não há contradição entre as normas", argumenta Júlia Rocha, da Artigo 19.
Lançamentos
No contexto das celebrações de 10 anos da validade da LAI, entidades e estudiosos do tema estão lançando publicações sobre a norma.
A Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), a Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica) e a Universidade de Brasília (UnB) lançaram na quarta-feira (18), o livro “10 anos da Lei de Acesso à Informação: limites, desafios e perspectivas", durante audiência pública proposta pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), na Comissão Legislativa Participativa na Câmara dos Deputados. Lopes foi o autor do projeto de lei que originou a LAI.
O livro tem a coordenação geral da professora Elen Geraldes, da UnB, e conta com outros 14 organizadores de várias universidades e associações de pesquisa. A obra reúne artigos e entrevistas de mais de 80 autores, que pertencem a aproximadamente 50 instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior, analisando a LAI sob a perspectiva dos seus resultados, importância, desafios e riscos e necessidade de aperfeiçoamento.
Outra publicação também foi lançada essa semana pela Artigo 19. Trata-se do relatório "10 anos da Lei de Acesso à Informação: de onde viemos e para onde vamos".
O documento analisa e traz diagnósticos quanto à transparência e à garantia do direito de acesso à informação pública após a implementação da lei, a partir da consulta a mais de 30 especialistas da sociedade civil, governo, academia e movimentos sociais – incluindo a ex-presidenta Dilma Rousseff, que sancionou a norma, em 2011, e o senador Fabiano Contarato (PT-ES), que tem atuação em defesa da promoção do direito à informação no Congresso Nacional.
Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino