Apesar de não ter ingressado na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a Ucrânia foi o país que mais aumentou seu orçamento militar em 2022, tornando-se o principal importador de produtos em matéria de defesa, vindos tanto dos Estados Unidos como da União Europeia.
Em quase três meses de guerra com a Rússia, Washington aprovou US$ 19,75 bilhões (R$ 98 bilhões) em ajuda emergencial para Kiev, sendo US$ 6,5 bilhões (R$ 32,2 bilhões) em armas, tecnologia militar e desenvolvimento de programas de inteligência. Outros US$ 175,5 milhões (R$ 868 milhões) foram destinados para apoiar a aplicação de sanções contra Moscou, o que inclui US$ 43,6 milhões para financiar investigações do FBI sobre ciber ataques, monitorar transações em criptomoedas e o comércio com empresas russas.
Programas diplomáticos receberão US$ 125 milhões e as agências de cooperação estadunidense, como a Usaid, tem uma fatia de US$ 29 milhões.
O último pacote aprovado ainda inclui US$ 1,1 bilhão em assistência para países da Europa, Eurasia e Ásia Central aplicarrem sanções contra a Rússia.
Dessa forma, neste ano, Kiev ultrapassa a ajuda dada a outros aliados militares de Washington, como Israel, que recebeu US$ 3,3 bilhões (R$ 16,21 bilhões) em ajuda dos EUA em 2020 (como parte de uma lei aprovada pelo Congresso para que o repasse seja anual); Egito, que recebeu US$ 1,3 bilhão (R$ 6,38 bilhões); e a Jordânia, que recebeu US$ 510 milhões (R$ 2,5 bilhões).
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No mesmo período, o Brasil comprou US$ 15,3 milhões (R$ 75 milhões) em armas e tecnologia militar dos EUA, de acordo com os relatórios divulgados pelo Pentágono.
Além dos fundos da Lei de Dotações Suplementares à Ucrânia, o setor privado também aprovou repasses a Kiev. As empresas Google e Meta (Facebook) anunciaram um financiamento de US$ 15 milhões. Enquanto a SpaceX doou um satélite, segundo seu dono Elon Musk, para facilitar o acesso dos ucranianos à internet.
Já a União Europeia aprovou dois pacotes de ajuda à Ucrânia, totalizando um repasse de € 830 milhões (cerca de R$ 4,3 bilhões). Além disso, o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento disponibilizou € 2 bilhões (R$ 10,4 bilhões) em financiamento de empréstimos. Já o Reino Unido aprovou o envio de £ 400 milhões (R$ 2,4 bilhões) para Kiev.
O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional assinaram dois empréstimos no valor de US$ 2,2 bilhões e US$ 3 bilhões, totalizando aproximadamente R$ 26 bilhões.
Em abril, o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal, declarou a meios locais que cada dia de guerra custava US$ 4 bilhões à Ucrânia.
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Em 2021, o país atingiu uma alta histórica de US$ 5,4 bilhões – equivalente a cerca de 4% de seu PIB - em gastos militares. Isso equivale ao dobro do que era o gasto em 2014 - ano da guerra da Crimeia. O orçamento em defesa cresceu apesar do período de recessão econômica. Entre 2013 e 2020, o PIB ucraniano reduziu 18%, segundo o Banco Mundial.
No entanto, somando os repasses financeiros internacionais, a estimativa é que desde o início do conflito com a Rússia, o governo ucraniano quintuplicou seu orçamento militar, saltando de pouco mais dos US$ 5 bilhões registrados ano passado para um valor de US$ 25,65 bilhões, tornando-se o 14º maior orçamento bélico do mundo, sendo os EUA o principal fornecedor de equipamentos militares.
"Em junho do ano passado já havia uma decisão do Congresso de repassar US$ 250 milhões (R$ 1,24 bilhão) à Ucrânia. Essa ajuda, tanto dos EUA como dos ex-membros do Pacto de Varsóvia, não é de agora. Isso já vinha ocorrendo há muito tempo", comenta o pesquisador do Grupo Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Universidade Estadual Paulista (GEDES-Unesp), José Augusto Zague.
Desde 2014, com a guerra da Crimeia, Kiev dobrou o orçamento militar do país.
"A partir de 2014, a Ucrânia começa a modernizar o seu sistema de Defesa. A questão mais importante é que ela herdou seu sistema de defesa antiaérea da antiga União Soviética. Portanto, ela criou um programa de modernização em 2021, chamado Airforce Vision, que deveria ser implementado até 2035, para retirar todos os aviões de fabricação soviética ou russa, como o SU-24, SU-25, MIG-29 e sistemas de defesa aérea, como o S125, o Thor, o S300", destaca Zague.
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Os países que atualmente lideram o ranking de gastos militares são Estados Unidos (US$ 801 bilhões/R$ 3,9 trilhões), China (US$ 293 bilhões/R$ 1,4 trilhão), Índia (US$ 76,6 bilhões/R$ 370 bilhões), Reino Unido (US$ 68,4 bilhões/R$ 333 bilhões) e Rússia (US$ 65,9 bilhões/R$321 bilhões), que juntos concentram 61,7% do total de US$ 2.113 trilhões (cerca de R$11,6 trilhões) gastos em defesa, de acordo com o relatório anual de 2021 elaborado pelo Instituto Estocolmo para a Paz (SIPRI - siglas em inglês).
"Por mais que a Rússia apareça como o quinto orçamento militar isso não quer dizer muita coisa, porque com um valor menor eles conseguem produzir armamento suficiente para ser o segundo maior exportador de armas do mundo", comenta o especialista em segurança.
Exportações
Os Estados Unidos concentram 39% das exportações de armas e equipamentos militares em todo o planeta, seguido da Rússia, com 19%, e da França, que controla 11% do mercado, segundo dados publicados no último relatório anual do Instituto Estocolmo para a Paz.
Desde o início da guerra, em fevereiro, cerca de 40 milhões de armas, entre elas, 5 mil rifles, mil pistolas e 800 armas de disparo automático foram entregues ao exército ucraniano.
Entre os equipamentos transferidos dos EUA para Kiev mais recentemente estão 121 drones Phoenix Ghost, fabricados pela Aevex Aerospace, e outros 300 Switchblade drones (Aerovironment), dos tipos 300 e 600. Os primeiros são voltados para atingir alvos pequenos numa distância de até 16km. Já os Switchblade 600 podem atingir um tanque ou um veículo militar numa distância de até 64km.
Também foram entregues 72 obuses do tipo howitzers e outros 200 blindados do tipo M113, da FMC Corporation. Assim como 6 mil mísseis do tipo Javelins, de fabricação da Lockheed, 2 mil sistemas antimísseis Stinger, da Raytheon, assim como 11 helicópteros militares do tipo Mi-17.
A Ucrânia ainda recebeu sistemas de radar AN/TPQ-36 e AN/MPQ-64 (Raytheon), que servem para detectar helicópteros, drones ou mísseis. Além de 6 mil lança rojões tipo AT-4.
As cinco maiores empresas de segurança privada dos EUA – Lockheed Martin, Raytheon, General Dynamics, Boeing e Northrop Grumman – receberam cerca de US$ 2,02 trilhões de financiamento do governo durante a guerra no Afeganistão, de acordo com o Security Policy Reform Institute. Em 2019, a Lockheed teve um rendimento de US$ 53,2 bilhões, a Raytheon fechou o ano com um lucro de US$ 36,7 bilhões, seguida da Boeing, com US$ 33,6 bilhões, e da Northrup Grumman Corporation, com US$ 29,2 bilhões, de acordo com dados do SIPRI. Agora, novamente as gigantes do setor parecem ser as mais beneficiadas com a guerra na Ucrânia.
"Com a guerra, as grandes empresas do lobby armamentista, do complexo industrial-militar dos EUA, estão conseguindo desencalhar uma série de aeronaves de combate, como os F35, para países que antes não compravam esses equipamentos, como é o caso da Alemanha. Então os EUA estão ganhando dinheiro com a guerra", comenta o internacionalista José Augusto Zague.
A oferta de mísseis foi tamanha, que a gigante Raytheon acabou com o seu estoque de sistema Stinger. O CEO da empresa de segurança privada, Greg Hayes, disse que poderia reiniciar a produção do míssil somente em 2023, diante da falta de materiais de insumo.
"Isso também influencia a estratégia russa de guerra. Eles vão levar a guerra em banho-maria, esperando que esses mísseis terminem. Outra coisa que eles têm feito é destruir os sistemas de defesa antiaérea, que são herança da União Soviética", salienta o doutor em Relações Internacionais.
Crescimento da Otan
Desde o fim da Guerra Fria, a Otan vinha ampliando sua presença pela Europa, no entanto o conflito entre Rússia e Ucrânia deu um novo estímulo para o crescimento da Aliança Militar.
Em 2014, a Otan havia estabelecido que todos os países membros deveriam destinar 2% do seu PIB para o setor militar. No ano passado, oito países atingiram a meta, entre eles vários vizinhos da Rússia, como Polônia (2,1%), Estônia (2,2%), Letônia (2,3%) Lituânia (2%), Turquia (2,1%).
Agora Finlândia e Suécia já confirmaram seu desejo de ingresso, mas dependem da aprovação de todos os membros da organização (Turquia já demonstrou oposição à entrada do país).
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Dentre os objetivos expostos pelo presidente Vladimir Putin ao iniciar o que chamou de operação militar especial na Ucrânia, somente a suspensão da entrada de Kiev na Otan foi bem sucedida. Até o momento, Moscou não conseguiu "desnazificar" o país vizinho, diminuindo a presença de partidos neonazistas no governo ucraniano, e também não conquistou a independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk.
"Ao meu ver, a estratégia russa sempre foram essas: o avanço para Kiev sempre foi uma tentativa de manter parte das forças ucranianas naquela posição para conquistar o que é realmente de interesse russo, na região do Donbas e em Mariupol, completando uma ponte até a Crimeia e o território russo", analisa Zague.
Para o especialista em segurança, o maior interesse da Rússia é controlar o corredor que se iniciaria no norte, com a Crimeia, e finalizaria no sul, na cidade portuária de Odessa -- uma das principais zonas de escoamento de petróleo para países do ocidente, assim como o principal acesso ao mar Báltico e ao mar Negro.
"No final das contas a Rússia quer conquistar essa parte do território para fazer um acordo, que poderia incluir, por exemplo, que a Ucrânia nunca fará parte da Otan", conclui Zague.
Edição: Arturo Hartmann