A atuação do governo de Jair Bolsonaro (PL) perante os povos indígenas durante a pandemia pode configurar crime de genocídio. Essa é a tese das entidades que fizeram a denúncia do governo junto ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP), que encerrou nesta quarta-feira (25) as audiências de julgamento. Agora, os juízes da corte internacional vão se reunir para estabelecer o veredicto, que inicialmente está previsto para sair em julho.
O secretário-geral do TPP, Gianni Tognoni, explicou que o próximo passo do júri é analisar as denúncias da acusação, apresentadas na audiência pública, e também a posição do governo, que não enviou representante ao julgamento. Por conta disso, serão analisados documentos oficiais que tratam sobre o tema.
Assim como no primeiro dia de julgamento, a sessão desta quarta aconteceu simultaneamente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e na sede do TPP, em Roma (Itália). Integrantes do júri, espalhados por diversas partes do mundo, participaram remotamente.
"A violação dos direitos dos povos indígenas na pandemia é o cerne da atuação deste tribunal", destacou Tognoni. "A notificação da acusação dada ao governo inclui convite para estar presente e apresentar sua defesa, caso contrário o tribunal precisaria realizar a coleta destes documentos antes de dar um veredicto", explicou, destacando que a previsão de divulgação da decisão em julho pode não ser cumprida, já que os jurados estão em diferentes partes do mundo e nem sempre é possível realizar as reuniões por videoconferência.
Crime de genocídio
Para o advogado Maurício Terena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a condenação por crime de genocídio é necessária, dado que a atuação do governo durante a pandemia foi, sob a ótica dos povos indígenas, comparável à situação vivida nos tempos da chegada dos portugueses ao Brasil.
"Desde o primeiro dia da pandemia estávamos aflitos, pois essa história já tínhamos vivido. Quando a colonização começou, muitos parentes foram dizimados por doenças trazidas pelos portugueses, pelo contato direto e pela violência de estado", destacou. "Tivemos de ir à Suprema Corte porque as políticas se tornaram 'necropolíticas', o governo de fato não queria nos ver vivos".
A advogada Carolina Santana, assessora jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), lembrou a aprovação do Projeto de Lei 1142, que determinou que o governo deveria oferecer água potável, testes rápidos contra covid e material de higiene para indígenas, além de garantir reserva de leitos. Porém, por uma manobra da bancada evangélica, o texto previu também autorização para permanência de missionários religiosos nos territórios isolados.
"Com o fracasso das barreiras santiárias e o incentivo ao contato, como no caso da entrada de missionários nos povos isolados, aumentou a vulnerabilidade sociocultural e vulnerabilidade política dos povos isolados", explicou. "Estamos diante de povos e segmentos de povos sobreviventes de massacres. Estamos diante de cenário em que vemos povos desaparecerem. Se isso não configura genocídio, não sei mais o que poderia caracterizar", destacou.
Indagada sobre esses desaparecimentos, Santana citou o caso do Povo Juma, cujo último sobrevivente, Akurá Juma, que tinha entre 86 e 90 anos, morreu em Porto Velho (RO) em 17 de fevereiro de 2021, vítima da covid. Akurá recebeu o chamado "tratamento precoce" contra a doença em um hospital do Amazonas.
Visivelmente emocionada, Auricélia Fonseca, integrante da coordenação do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita), disse que a pandemia levou muitos idosos integrantes dos povos originários.
"Para algumas pessoas, uma anciã pode ser apenas uma pessoa velha. Como é para o Bolsonaro, que acha que a pessoa pode morrer. Mas para nós, os anciões são nossas bibliotecas vivas. É com eles que está a sabedoria do nosso povo. Não vamos fazer nem um minuto de silêncio, vamos falar por eles, vamos lutar por eles. Eles levaram consigo parte de nossa história e da sabedoria de nosso povo", bradou.
Esperança e revolta
Para a socióloga Maria Victoria Benevides, uma das fundadoras da Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a dor e a revolta relatados durante os dois dias de audiência devem ser combustíveis para esperança. Para isso, é preciso acompanhar e denunciar as violações de direitos humanos.
"É um cenário de vergonha. Um país que é tido como celeiro do mundo e que tem milhões de famintos. Um país que é o pulmão do mundo, mas é foco de dramática devastação ambiental", completou.
"Desde o dia 1º de janeiro de 2019, que foi o primeiro dia de governo, o presidente tem, diretamente, a partir de seus poderes constitucionais, fragilizado a proteção dos territorios indigenas, seja a partir da não demarcação de terras, seja a partir da suspensao de projetos em demarcação, seja retirando dinheiro da Secretaria de Saúde Indígena, seja a partir da fragilização das portarias que protegem os povos indígenas isolados. Essa política altera o sentido de atuação das instituições que antes eram destinadas a proteger os povos indígenas", concluiu a advogada Eloísa Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas e integrante da Comissão Arns.
Simbolismo
O Tribunal Permanente dos Povos não tem atribuição para aplicar penas, mas as decisões servem de alerta para a comunidade internacional. Eventual condenação, se ocorrer, será simbólica.
Esta é a 50ª reunião do TPP. Fundado em 1979 na Itália, ele foi inspirado no Tribunal Russel, organizado pelo filósofo britânico Bertrand Russel, vencedor do prêmio Nobel de literatura. Entre os crimes investigados pelo Tribunal Russel estão os das ditaduras do Brasil, Chile, Uruguai e Bolívia, julgados entre 1974 e 1976. Na ocasião, o veredito foi que as autoridades dos quatro países cometeram violações "sérias, repetidas e sistemáticas" contra os direitos humanos, o que constitui crime contra a humanidade.
A ditadura argentina foi um dos primeiros casos julgados depois da criação do TPP. Também foram julgadas violações de direitos humanos na antiga Iugoslávia, na Turquia (contra os curdos) e contra populações imigrantes e refugiadas em diferentes partes do mundo.
Edição: Rodrigo Durão Coelho