James Baldwin romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social estadunidense disse que, se realmente desejamos saber qual é a qualidade da administração da Justiça de um país, não devemos perguntar aos que são protegidos por esse sistema, em função de seu status social, como policiais, advogados, juízes e todos os demais que formam o grupo dos privilegiados.
O questionamento deve ser dirigido aos que são desprovidos dos direitos sociais e individuais mais básicos e que, consequentemente, são os que mais precisam de proteção. As minorias raciais e os desvalidos saberão responder como são tratados pelo poder político, jurídico e econômico “e então se saberá, não necessariamente o que é a justiça, mas se esse país tem algum amor por ela ou qualquer compreensão dela. Devemos estar certos de que o desprezo, quando aliado ao poder, é o inimigo mais feroz que a justiça pode ter”.
A PEC 206 de 2019 que objetiva instituir a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, que não por acaso tem como proponente o General Peternelli, é um bom exemplo de como o Brasil trata o seu povo. Não é mera coincidência que os militares tenham publicizado recentemente o Projeto de Nação – Cenário Prospectivos Brasil 2035, o qual defende o fim do sistema público de saúde e aponta que o marco mais importante para a melhoria de desempenho das universidades públicas foi a decisão de cobrar mensalidades.
:: Após mobilização, PEC que institui mensalidade em universidades públicas sai de pauta ::
Curiosamente no Projeto de Nação dos militares não consta o fim das regalias que estes possuem, que em grande parte são extensivas aos parentes e aderentes, como as escolas de educação básica para os seus dependentes, com valor aluno ano bem superior aos das demais escolas públicas, academias de formação em nível superior para seus integrantes, hospitais muito bem equipados, tudo custeado pelo dinheiro público.
A escravocracia brasileira, produtora das piores e mais diversas violências e que tem nos militares excelentes representes e fiéis defensores, quer alterar a Constituição para destituir do povo brasileiro o direito à educação superior pública, que deve ser financiada com a verba advinda de impostos e taxas pagos por todos nós.
Como boa detentora dos privilégios obtidos por meio do sangue e suor dos trabalhadores, se recusa a implementar o que está previsto no inciso VII do art. 153 da CF de 1988, que define que a União deve instituir impostos sobre as grandes fortunas, por meio de lei complementar, que favoreceria o financiamento das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES).
As universidades públicas brasileiras são reconhecidamente as de melhor qualidade no país
As universidades públicas brasileiras são reconhecidamente as de melhor qualidade no país, respondem por quase a totalidade da produção científica e tecnológica, além de figurarem como as mais bem posicionadas nos rankings internacionais. O acesso à educação superior nestas instituições, assim como às escolas técnicas federais e estaduais, foi até a década de 1990, privilégio dos mais ricos e brancos, que não demonstravam nenhuma insatisfação ou contrariedade com o estado financiando as IES públicas,
Esse quadro começa a mudar a partir dos anos 2000, quando estas passam a criar políticas de ações afirmativas e, sobretudo com a aprovação da Lei de Cotas ( Lei 12.711, de 2012), que destina 50% das vagas em universidades e institutos federais para pessoas pardas, pretas, indígenas, com deficiências e estudantes de escolas públicas.
A Lei de Cotas sociais e raciais e as políticas de ações afirmativas vêm mudando a cara das universidades públicas. Em 2012, segundo dados do Censo da Educação Superior entre os estudantes que se autodeclaram, 59% eram brancos e 41% negros.
Leia também: Opinião | Lei de Cotas tem que ser renovada para sonharmos com um Brasil menos desigual
Em 2014, ano de aprovação do atual Plano Nacional de Educação – Lei 13.005, que traz como meta a elevação da taxa de matrícula na educação superior para 50% sendo que pelo menos, 40% das novas matrículas deveria ser segmento público, os dados do Censo mostram esse percentual era de 54% de estudantes brancos e 45% negros e negras.
A aprovação da EC 95 em 2016 impediu a expansão das matrículas nas IES públicas, que vem sofrendo cortes no orçamento ano após ano. Apesar da Emenda, o Censo de 2020, último dado disponível, aponta um equilibro no percentual de brancos e negros nas IES públicas, como ligeira vantagens para os estudantes negros e negras, que agora somam 50% do total de matriculados, enquanto os brancos são 49%.
Cobrar de quem pode pagar é incompatível com um sistema público, que tem suas instituições financiadas pelos tributos pagos por toda a população. Assim, a PEC 206 é subterfúgio para privatizar as universidades e impedir o acesso dos mais pobres à educação superior. Segundo dados da pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), 70,2% dos estudantes das universidades federais, responsáveis por 64% da oferta pública, são de baixa renda, o que confirma o argumento da negação de direito aos mais pobres.
O acesso desse público a educação superior tem se tornado fundamental para que pessoas negras já ocupem, mesmo que em número muito menor, postos de pesquisadores e pesquisadoras, docentes universitários, cargos no legislativo, executivo e judiciário. Tem possibilitado, ainda, que estas pessoas atuem de forma qualificada nos espaços de incidência e possam brigar contra a naturalização do racismo, machismo, das desigualdades sociais, econômicas e de gênero.
O educador Anísio Teixeira afirmou ser a educação o direito dos direitos, tendo em vista que ela nos faz saber que existem direitos e nos dá as ferramentas para lutar por eles.
A PEC 206/2019 é o meio para impedir que a população preta e pobre usufrua dos direitos instituídos e tenha acesso aos espaços que tem historicamente sido de manutenção dos privilégios.
Em síntese, a elite política e econômica do país, da qual a alta cúpula militar faz parte, quer continuar usufruindo dos privilégios de sempre, as custas do suor e sangue da maioria dos brasileiros, sem serem incomodados. À população preta e pobre é destinada um sistema de injustiça que encarcera, asfixia e mata, seja por meio de chacinas ou pela ação covarde que tem assassinado, diariamente, Genivaldos de Jesus Santos.
Para usar um bordão da juventude, que se aprovada a PEC 206, ficará sem universidade pública: é sobre isso.
* Catarina de Almeida Santos é professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante