A defesa da legitimidade eleitoral não pode ser feita somente depois de vencer o pleito
Vem mais apressado o perigo desprezado.
Dobrado é o perigo de quem foge ao inimigo.
Não se vence um perigo sem outro.
Sabedoria popular portuguesa
A esquerda brasileira não deve cometer o erro imperdoável de subestimar Bolsonaro mais uma vez. Não serão eleições normais. Exigem atenção, vigilância, alerta. Não serão meses de campanha eleitoral “a frio”. Lula é favorito e abriu-se uma conjuntura, pela combinação de vários fatores, que coloca até a possibilidade de uma vitória de Lula no primeiro turno, ainda que hoje ainda não seja a mais provável. Quatro meses são uma “eternidade”.
Mas a vida é dura e a chantagem golpista não pode ser ignorada. Um monstro ferido é mais feroz. O perigo que nos ameaça não é uma quartelada. Bolsonaro não está preparando uma insurreição militar como foi o levante de 1964. Não pode fazê-lo com um mínimo de probabilidade de vitória. Não tem condições. Mas entre a hipótese de um golpe de Estado clássico, à boliviana, e a aceitação do resultado eleitoral, à argentina, há hipóteses intermédias.
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A ameaça golpista assume a forma de um desafio frontal ao resultado das eleições. O desfecho desta campanha de provocações contra a lisura das urnas é previsível. Bolsonaro antecipa a denúncia de fraude se perder, e prepara um tumulto, desordem, escândalo, alvoroço social e político. Não se trata, somente, de protestos retóricos ou blefe, mas uma tática que anuncia a disposição de mobilizar nas ruas o núcleo duro de sua base social. Não deveríamos esquecer o que aconteceu no passado dia 7 de setembro e, ainda que em escala muito menor, no 1º de maio.
As lideranças do PT, em especial Gleisi Hoffmann, têm respondido à altura. Mas Lula tem evitado denunciar as provocações golpistas. O ano passado Lula evitou, também, participar dos Atos pelo Fora Bolsonaro, o que foi um erro. Uma omissão é um posicionamento. Ou o perigo é real ou não é. Não vai deixar de existir porque é ignorado. Ministros do Supremo Tribunal Federal como Fachin, Rodrigo Pacheco presidente do Senado e, espantosamente, até o diretor da CIA têm alertado que Bolsonaro prepara uma confusão, algazarra, pandemônio, balbúrdia. Não é razoável que, justamente, Lula mantenha silêncio, quando é a voz que melhor pode ser ouvida.
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O argumento de que a campanha Lula não deve perder o foco não é razoável pela gravidade do que está em disputa. O embate será inescapável. É verdade que o principal flanco de Bolsonaro é a degradação das condições materiais de vida. Emprego, inflação, salário, moradia são temas organizadores da esperança popular. Sobretudo, se apresentarmos propostas concretas do que deve ser feito. É sempre a perspectiva de futuro que pode encantar as pessoas. O balanço comparativo do passado só pode ser auxiliar. Mas a defesa da legitimidade do resultado eleitoral não pode ser feito com autoridade somente depois de vencer as eleições.
Bolsonaro envenena, politicamente, a sua área de influência, desde agora, porque sabe que não vai precisar provar, em outubro, que houve fraude para legitimar a convocação às ruas. Não vai ter que provar nada. Será o bastante a denúncia de uma conspiração “com o Supremo, com tudo”. Já acusou os Tribunais Superiores, em especial o TSE e Alexandre de Moraes, de agirem como um partido de esquerda.
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A audiência que o neofascismo conquistou em parcela das camadas médias, com apoio da massa da burguesia, o apoio de uma fração da alta oficialidade militar e a capilaridade de igrejas-empresas será o bastante. A extrema-direita está na defensiva, eleitoralmente, mas a corrente neofascista ainda é forte o bastante para convulsionar o processo eleitoral mobilizando na escala de centenas de milhares, mesmo se perder. O bolsonarismo não vai deixar de existir.
As ininterruptas provocações às urnas eletrônicas, a exigência de recibo eleitoral impresso, o anúncio de contratação de uma empresa para realizar auditoria externa da apuração são movimentos preventivos. Eles obedecem a um objetivo estratégico: garantir que será intocável. Bolsonaro receia as investigações que podem atingi-lo e às lideranças de sua corrente, em especial, o clã dos filhos. Teme a prisão e tem boas razões para ter medo.
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Ninguém deveria desconsiderar que foi a necessidade de controle da Polícia Federal que provocou a crise com Moro na famosa reunião do ministério que foi filmada. Não foi Sergio Moro que rompeu com o governo, foi Bolsonaro que lhe deu um ultimato.
Há na esquerda quem avalie que as declarações de Bolsonaro são uma enganação. Um blefe é uma manobra de tapeação ou engano. Bolsonaro estaria, somente, fingindo. Um neofascista como Bolsonaro usa e abusa da dissimulação e mente como se não houvesse um amanhã, é verdade. Mas o que a extrema-direita está organizando todos os dias é uma campanha. Deve ser levada a sério.
Não estão reunidas as condições para um putsch ou ruptura institucional. Seria uma aventura condenada desde o início, porque exigiria sustentação na fração mais poderosa da burguesia, altíssimo grau de unidade nas Forças Armadas, cumplicidade do governo norte-americano, mobilização da maioria das camadas médias, apoio nos meios de comunicação de massas, e algum grau de legitimação no Congresso e Tribunais Superiores.
Mas Bolsonaro não é um cadáver insepulto e disputa um lugar no segundo turno. Organizou um incrível desfile de lanchas em Brasília, faz motociatas todas as semanas, desfilou na Feira do Agronegócio em Ribeirão Preto, foi ovacionado pelos donos de supermercados, celebrado em almoço na FIESP, mantém metade do apoio na população masculina, tem maioria ampla em empresários e naqueles que têm renda igual ou superior a dez salários mínimos, é referência entre a oficialidade das Forças Armadas e Polícias e, muito importante, mantém a confiança do eleitorado evangélico.
Há uma maioria social na oposição enraizada nas camadas mais exploradas e oprimidas do povo, entre as mulheres, os jovens, os negros, os LGBTs, no nordeste e nas grandes cidades. Na visita de Lula à Unicamp e durante a Virada Cultural em São Paulo se confirmou uma “explosão vulcânica” na juventude, tanto universitária como popular, de fúria contra Bolsonaro.
Há que incendiar a imaginação popular.
Mas sem diminuir os perigos que estão à nossa frente.
O golpismo tem que ser derrotado. Lula deve dizê-lo.
Edição: Rodrigo Durão Coelho