O governo argentino segue em uma batalha para aplicar políticas necessárias – e possíveis – para conter a inflação e a perda de poder aquisitivo da população. Em um contexto de guerra na Ucrânia e de emergência climática, o aumento de preço e a crise de abastecimento torna-se uma questão global que se incrementa a um problema inflacionário há muito conhecido na Argentina.
Na semana passada, o governo anunciou o aumento do valor salarial mínimo para a cobrança do imposto de renda. O objetivo seria proteger o poder aquisitivo sobre os reajustes salariais devido à alta da inflação. No entanto, especialistas, e o próprio presidente Alberto Fernández, alertam para a necessidade de políticas amplas para atacar as diversas causas do mesmo problema: uma inflação mensal média de 5,3%, com projeção de 70% de acúmulo para este ano.
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O governo busca, nesse cenário, separar os preços internos e os internacionais, garantindo abastecimento e acesso aos alimentos. Assim, a Casa Rosada lançou a possibilidade de aplicar novas medidas de aumento às exportações de commodities (chamadas de retenções na Argentina), em particular as que a Argentina mais exporta, como soja, trigo, milho e girassol.
"O instrumento com o qual se desacopla mais facilmente os preços internos do internacional são as retenções", disse o presidente, em entrevista à Rádio con Vos. Mas, seguiu Fernández, "o setor do 'campo' interpreta que são medidas contra ele", afirmou, ressaltando que não contaria com os votos suficientes no Congresso para aprovar a medida.
O reajuste de impostos sobre os produtos enviados ao exterior afeta um setor com grande influência política e o principal gerarador de divisas para o país: o agroexportador. Assim, a anunciada intenção do presidente teve poucas possibilidade de ser discutida, incluindo discordâncias com sua própria ala no gabinete.
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O ministro da Economia, Martín Guzmán, defendeu o fluxo de entrada de dólares, em meio a uma busca de fortalecimento das reservas para pagar ao Fundo Monetário Internacional, e que, nesse sentido, as retenções seriam contraproducentes. Por sua vez, o Ministro da Agricultura, Julián Domínguez, se adiantou e, em tweet, desmentiu o presidente. "De nenhuma maneira vamos aumentar as retenções ou enviar um projeto de lei", escreveu.
Antes de presentar el Plan GanAr en Córdoba, hablé con @alferdez, @JuanManzurOK y @gabicerru. Desde que asumí, la preocupación del Presidente es el aumento de los alimentos para las y los argentinos. De ninguna manera se van aumentar las retenciones ni enviar un proyecto de ley.
— Julián Domínguez (@DominguezJul) May 20, 2022
As últimas semanas também foram marcadas pela renúncia do secretário de Comércio Interior, Roberto Feletti, responsável por ampliar a lista de produtos nos programas de preços máximos nos supermercados. Alinhado ao kirchnerismo, sua saída foi justificada devido às diferenças com o ministro da Economia sobre, justamente, quais são as políticas que devem ser aplicadas para o controle de preços e da inflação.
Em sua semana de estreia no cargo, o novo secretário, Guillermo Hang, enfrentou uma difícil reunião com Daniel Funes de Rioja, presidente da Coordenação de Produtores de Alimentos (Copal), nesta quinta-feira (2). Hang apontou o problema de desabastecimento provocado por parte das empresas de alimentos e da especulação de preços dos produtos listados no Preços Cuidados em estabelecimentos não contemplados pelo programa, em que as distribuidoras vendem o mesmo produto mais caro. O empresário arrematou que "a brecha de preços não é culpa das empresas de alimentos", apontando para as políticas de intermediação.
Proteção sobre o mercado interno em nível mundial
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia vem afetando os preços e a oferta de alimentos e energia no mundo, o que encarece também a própria produção de alimentos em todas as suas etapas.
A revista britânicaThe Economist diagnosticou na sua edição da semana passada que o mundo pode atravessar uma "catástrofe alimentar", em um cenário de crise climática e de abastecimento global. Alerta, neste caso, que o acesso aos alimentos depende não apenas de renda, mas de decisões políticas.
Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa de Políticas Alimentares, já são pelo menos 23 países que aumentaram os impostos sobre as exportações. É o caso da Índia, segundo maior produtor de trigo no mundo, que proibiu as exportações diante da forte onda de calor que afeta a região, com registros de 50ºC. A iniciativa foi criticada pelo G7, que chamou a Índia a "cumprir seu dever como membro do G20", como afirmou o ministro alemão Cem Özdemir.
Experiência argentina com as políticas de retenção
Atualmente, a Argentina conta com políticas restritivas sobre as exportações de cortes de carne e de preços máximos com o programa Cortes Cuidados. No entanto, os preços continuam subindo, com a resistência, nesse caso, do setor frigorífico.
"É evidente que qualquer política de impostos, ou de atualização de impostos, que são a maioria, encontre o rechaço do setor agroexportador", define a economista Eugenia Rodríguez, do Centro de Economia Política (Cepa). "É um setor que não perdeu durante a pandemia e, se fazemos uma comparação na curva de lucros, está acima do crescimento geral da economia."
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No caso do trigo e do milho, as políticas vigentes são de quotas de exportação, com um volume de exportação pré-determinado pelo governo para garantir o abastecimento interno. Segundo a avaliação do Cepa, as políticas de incentivo ao controle de preços existem. Para Rodríguez, a aposta deveria ser a fiscalização. "Seria necessário pensar medidas sancionatórias e de maior controle diante de incumprimentos", afirma.
"A retenção aparece como uma ferramenta com dois fins pontuais: desacoplar preços internos dos internacionais e evitar o impacto sobre a população e, por outro lado, serve como ferramenta redistributiva, porque em um contexto de lucro extraordinário das grandes empresas e exportadores, permite redistribuir a outros setores através dessa ferramenta do Estado com políticas concretas para, por exemplo, salários e subsídios", diz, mencionando outro projeto do Executivo, o imposto sobre o lucro extraordinário, que ainda não passou da expectativa.
O fato de que o país atravessa um ano pré-eleitoral também entra em questão. Analistas do setor industrial apontam que o setor que mais gera dólares ao país pode perfeitamente deixar de vender parte de seus grãos à espera de um novo cenário político em 2023.
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O economista Matías de Luca, do Centro de Estudos para a Recuperação Argentina (RA), opina que o problema consiste em um erro de diagnóstico. "Não estão considerando que o problema dos alimentos é um salto de nível. A guerra gerou contração na oferta, principalmente de trigo e milho, e uma dinâmica de aumentos de preços persistentes. Aplicar retenções até pode baixar o preço, mas não vai cortar a inércia inflacionária, que é o real problema na Argentina", pontua. "Não há um plano antiinflacionário."
Nesse sentido, aponta que produtos menos consumidos na Argentina são afetados pelas políticas de retenção, como os derivados da soja, além de que os mais consumidos, como o trigo e o milho, registraram menor taxa de aumento em relação a outros picos. "Ainda que o preço do trigo e do milho tenham aumentado 30% em relação a dezembro no câmbio real – ou seja, já descontando o que se cobra pelo direito à exportação –, não são os níveis máximos que atingiram em 2011 e 2015, que era o buscavam justificar. Portanto, uma parte mais cautelosa do governo não quer gerar problemas em níveis comerciais em um contexto em que a Argentina precisa de reservas e se comprometeu com o FMI a acumular divisas."
Edição: Rodrigo Durão Coelho