Memória

Primeiro museu digital de cestarias expõe produção artesanal de comunidades tradicionais do RJ

Museu digital 'Tramas Daqui' traz os saberes ancestrais de indígenas, quilombolas e caiçaras de Paraty

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As criações Guarani, em geral classificadas socialmente como artesanato, constituem a principal forma de levantar recursos em muitas aldeias. - Divulgação _ Polo Sociocultural Sesc Paraty
A importância da presença indígena neste processo é indiscutível

A história de um povo pode ser contada de diversas maneiras. Uma delas é retratar as atividades cotidianas, como a pesca, mitos e a agricultura por meio da arte. Cestos, luminárias, peneiras e balaios em exposição no museu digital Tramas Daqui ajudam a preservar e traduzir o modo de vida, a memória e a identidade de comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras de Paraty, no Rio de Janeiro. 

Ao navegar pelo museu você sabe quem produziu a peça e um pouco sobre o artesão. Por exemplo, na Aldeia Itaxi Mirim a cestaria feita pelos Guarani Mybiá se chama ajaka e a palha trançada se relaciona com a forma de organização do mundo povo guarani.

As tramas formam grafismos inspirados em figuras míticas como o Deus Nhanderu. Para representar a produção, foram escolhidos os três artesãos mais velhos da comunidade: Dona Alminda, Dona Iracema e o cacique Pedro. 

“Com a ascensão do novo cacique Pedro, surgiu o interesse dele em fazer ações de valorização da produção artesanal local. Escolheram fazer peças pequenas, que são de fato usadas por eles no cotidiano: uma para ritos de batismo das crianças, outra usada na coleta de peixe e outra para vender”, explica Jaqueline Silva, analista de cultura do Polo Cultural Sesc Paraty.

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As 34 peças expostas no primeiro museu digital dedicado às cestarias foram selecionadas por meio de um processo de curadoria colaborativa, de acordo com as peças que mais representassem a cultural de cada local no momento em que o estudo foi realizado. 

“A importância da presença indígena neste processo é indiscutível: são os donos da terra, e suas técnicas, assim como as técnicas negras, que advém do território africano também tinham essa tecnologia de tramar e de trançar. Chegando aqui elas se misturaram e se amalgamaram, e compõem a real cultura brasileira hoje”, diz Silva.


A colheita da matéria-prima no Quilombo do Campinho é feita na lua minguante, com atenção às quantidades necessárias e à necessidade de preservação, evitando-se, assim, o desperdício. / Divulgação _ Polo Sociocultural Sesc Paraty

O projeto respeitou os rituais de cada comunidade, as colheitas em determinadas luas, os ciclos de produção, o caminho para mata entre outros elementos. “Dia de ir para a mata precisa de tempo para olhar... Para se conectar com tudo e entender o que a mata pode dar naquele dia”, diz Adilson Tupã, articulador local do projeto

Jaqueline comenta que, do ponto de vista material, algumas espécies de cipó, como o imbé, estão cada vez mais difíceis de encontrar, pela exploração desenfreada de não indígenas que produzem em grande quantidade para lojas da região e também por conta das mudanças climáticas. 

“Aqui em Paraty, os indígenas, assim como as populações caiçaras e quilombolas, têm uma luta histórica pelo seu território, pois estão sendo prensados por áreas de proteção que não consideram que as comunidades tradicionais são de fato protetoras deste lugar, desde antes da invasão colonial”.

A caiçara Mauriceia Pimenta Tani é articuladora caiçara atuante na luta pelos direitos das comunidades  tradicionais em seus territórios. Ela é da comunidade Caiçara de São Gonçalo, em Paraty. Um dos ensinamentos dessa comunidade é a colheita sustentável, como forma de preservação da matéria-prima.

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A colheita para a cestaria é feita na lua minguante e deve sempre preservar a matriz da planta. A maioria das espécies é de plantas perenes da Mata Atlântica.

 “Estou aprendendo a fazer cestaria agora aos 32 anos de idade. Estou em contato com os mestres da minha comunidade, que detém o conhecimento da feitura, os saberes, qual época é boa ou não para colheita da matéria-prima. A cestaria é simples, é um conhecimento que não está retido na escrita, mas está na oralidade, na prática, na nossa relação de vida com o ambiente à nossa volta”, ressalta Tani.

As cestarias são feitas de diversos materiais, que variam de acordo com o território. Geralmente são de cipó arranha gato, cambira, fibras do palmito juçara e de banana. 

Na comunidade Caiçara de São Gonçalo, as cestarias ainda não são fonte de renda desses artesãos. As cestarias são apenas expressões da comunidade para uso na roça e na pesca. 

Os objetos produzidos pelos antepassados mais lembrados pelos artesãos contemporâneos são os samburás, cestos para carregar alimentos e artigos para pesca, como iscas; o tipiti, utilizado para prensar farinha; e o covo, artefato de pesca que é imerso na água para a captura de peixes.

“A cestaria para mim é ancestral. Ela é a maior resposta de que um ser humano tem basicamente tudo que ele precisa pra sobreviver da terra, da floresta, das árvores, das folhas; e que realmente a gente precisa se reiniciar [nesses saberes]”. 

A visitação virtual pode ser feita pelo site: http://museutramasdaqui.art.br/

Edição: Douglas Matos