Um dos poucos países na América do Sul que proíbe o cultivo de alimentos transgênicos, a Venezuela possui uma legislação específica contra o uso de sementes deste tipo e de grãos protegidos por patentes: a Lei de Sementes. Aprovada em 2015 após anos de discussão entre cientistas e militantes de luta no campo, a norma, entretanto, se tornou alvo de debates entre empresários, associações agrícolas e parlamentares venezuelanos que levantam a possibilidade de revisar seu funcionamento.
Por um lado, os defensores das reformas na lei afirmam que são contra os transgênicos e que as revisões que buscam fazer poderiam trazer benefícios econômicos ao país. Já diversos movimentos populares que lutam por soberania alimentar na Venezuela acreditam que mudanças na legislação podem colocar em risco a proibição do cultivo desse tipo de semente em território venezuelano.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a bióloga e ativista da Feira Conuqueira Agroecológica de Caracas, Giselle Perdomo, afirmou que há um interesse econômico por trás da ação de grupos que querem mudar a Lei de Sementes. Suas atividades estão voltadas principalmente para as sementes de milho, já que existe ampla demanda pela farinha pré-cozida desse grão por ser o ingrediente base da arepa, um dos alimentos mais consumidos na Venezuela.
"Os interesses são claramente econômicos, com um desejo de trazer sementes transgênicas para o país, particularmente de milho, e assim desenvolver esse tipo de agricultura industrial com agrotóxicos, o que por um lado promete produtividade, e por outro contamina os rios, os solos e afeta a soberania alimentar”, afirmou.
Segundo Perdomo, também está em curso no país uma campanha contra "sementes piratas", que teriam procedência supostamente duvidosa. A ativista alega que tal categoria serviria para “criminalizar” as sementes crioulas, nome que se dá aos grãos preservados e selecionados por longos períodos de tempo por camponeses e que estão protegidos pela Lei de Sementes de 2015. O objetivo de tal prática, segundo a ativista, seria o de garantir que o mercado seja apenas ocupado por produtos de grandes empresas privadas.
"A Lei de Sementes também reforça a viabilidade do comércio de sementes camponesas. Nós vemos em diferentes matérias de imprensa um desejo de criminalizar o comércio do que eles chamam de ‘sementes piratas’. Teríamos que ver o que é isso, o que eles querem denominar como ‘semente pirata’ e com qual intenção", disse.
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Um dos apoiadores da ideia de revisar e modificar pontos da Lei de Sementes venezuelana é o deputado federal Pablo Alvarado, representante do estado de Guárico pelo partido Pátria Para Todos (PPT). Vice-presidente da Confeagro (Confederação do Agro), entidade que reúne diversos produtores agrícolas do país, o parlamentar participou, nos primeiros meses de 2022, de ao menos cinco eventos públicos que envolveram discussões sobre o combate às "sementes piratas" e inovações tecnológicas no setor de organismos geneticamente modificados.
Uma dessas conferências, que ocorreu no dia 1º de abril na cidade de Maracay, estado de Aragua, levava o nome de "Futuro da Tecnologia dos Organismos Geneticamente Modificados" e foi organizada pela Associação Venezuelana de Empresas Sementeiras (AVESEM), grupo que reúne empresas privadas fabricantes de sementes.
De acordo com a página oficial da associação, ela serve para "representar seus filiados frente a organismos nacionais e internacionais, públicos e privados". Entre as empresas associadas à AVESEM estão as gigantes agroquímicas Bayer e Syngenta, duas das maiores produtoras de sementes transgênicas do mundo.
Em matéria sobre o evento, o jornal local de Guárico La Jornada afirmou que o "futuro da tecnologia dos Organismos Geneticamente Modificados será incorporado à discussão na Assembleia Nacional", o Congresso venezuelano. O periódico ainda afirma que os participantes da conferência “destacaram a ambiguidade da atual Lei de Sementes e a possibilidade de uma revisão". Ali, o deputado Pablo Alvarado afirmou que "estará trabalhando em diferentes níveis do Legislativo em prol do benefício dos produtores agrícolas".
Em entrevista ao Brasil de Fato, Alvarado afirmou que defende vários pontos da lei de sementes venezuelana e que é contra o cultivo de alimentos transgênicos no país. As mudanças que o parlamentar enxerga como positivas para a atual legislação deveriam, segundo ele, ocorrer no âmbito das patentes sobre grãos, prática que é proibida pela norma atual.
“Eu acredito que é muito importante normatizar o tema da proteção intelectual, a propriedade intelectual deve ser protegida, porque nós precisarmos nos adequar a uma globalização, a novos investidores, nós temos que proteger as ideias, a tecnologia. De fato, os venezuelanos também possuem novas tecnologias às quais devemos dar proteção", disse.
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Sobre a campanha contra as “sementes piratas”, o parlamentar afirmou que não tem como alvo a produção de grãos tradicionais, mas sim visa aumentar a fiscalização aduaneira e orientar os produtores do país sobre falsificações de sementes que são vendidas como puras, mas que na verdade são de segunda ou terceira geração de cruzamentos, o que as torna de qualidade inferior.
Alvarado, contudo, deixa claro que é um entusiasta de “levantar o grande debate” sobre organismos geneticamente modificados em espaços institucionais e entre a população, pois acredita que há “muita desinformação” sobre o tema e que esse tipo de tecnologia poderia beneficiar novos investimentos no país.
"Dialogar e debater não é ser contra as novas tecnologias, muito pelo contrário. Até onde vão os organismos geneticamente modificados, a adição desses organismos para o benefício da população mundial, é esse o debate que devemos escutar, eu acho que devemos falar muito sobre isso, porque se fala pouco, em alguns casos se mente, e não se fala de maneira clara", disse.
O temor de ativistas camponeses, no entanto, é de que modificações como essas propostas por Alvarado possam levar a um desmonte da Lei de Sementes até um nível em que se libere o cultivo de transgênicos, se permita patentes sobre os grãos e se crie um monopólio de empresas multinacionais que possuem sementes registradas por patentes.
"Nós vamos seguir defendendo a lei de sementes até onde pudermos porque ela é vanguarda no mundo. Não só proíbe as sementes transgênicas, mas também garante, por exemplo, a defesa dessa semente camponesa por meio de licenças livres. Então, uma camponesa que trabalhou por gerações para gerar uma semente de melancia particularmente boa para as condições venezuelanas não pode patentear, mas licenciar isso, ou seja, seu trabalho é reconhecido e é protegido de outras companhias que podem decidir que vão industrializar essa semente por conta própria, chamar de sua e fazer usufruto daquele trabalho”, afirmou Perdomo.
Alvarado, porém, afirma que o debate que está propondo não visa derrubar a lei venezuelana nem permitir o cultivo de transgênicos, mas sim adequar as normas do país para novos mercados e novas tecnologias.
“Alguns podem dizer: 'o deputado Pablo Alvarado quer que a lei de sementes seja eliminada, derrubada, para abrir as portas para os transgênicos no país'. Isso é mentira. Nós protegemos nossas sementes autóctones, nós temos que proteger o ambiente, estamos obrigados a proteger os produtores para que tenham rendimento, mas nós temos que dizer a verdade ao país e ao mundo: temos que avançar nas novas tecnologias", afirmou.
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a AVESEM, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
O que são transgênicos, o que diz a ciência e a lei?
Apesar de o ex-presidente Hugo Chávez ter se oposto de maneira contundente ao cultivo de alimentos transgênicos na Venezuela em distintas ocasiões, foi só no mandato de Nicolás Maduro que o país elaborou uma legislação específica para proibir esse tipo de produção no país.
A Lei de Sementes foi aprovada pelo Legislativo venezuelano em dezembro de 2015, após um longo período de discussão dentro e fora dos espaços parlamentares e institucionais.
Os primeiros passos desse movimento começaram em 2012, quando foi realizado o 1º Encontro Internacional de Guardiões de Sementes, evento que contou com a participação de mais de 300 organizações sociais de diversos países do mundo. O objetivo era discutir a necessidade de uma legislação que fosse declaradamente anti-transgênica, já que a lei de sementes então vigente, datada do ano de 2002, não contava com cláusulas claras nesse sentido.
Durante os anos de 2013 e 2014, vários movimentos populares e comunais da Venezuela se empenharam em debater e elaborar um projeto de lei que proibisse o cultivo de transgênicos e, além disso, incentivasse e priorizasse o uso de sementes crioulas, com atenção especial às fabricadas por práticas indígenas e quilombolas. As discussões ocorreram com auxílio de acadêmicos e cientistas de instituições de ensino e pesquisa do país, além do apoio de deputados chavistas.
De todos os 71 artigos que compõem a lei, o de número 66 é o mais claro sobre a proibição de transgênicos, banindo a "produção, importação, comercialização, distribuição, liberação, uso e multiplicação de organismos e cultivos geneticamente modificados mediante a biotecnologia moderna". Embora esse parágrafo da norma não mencione diretamente a palavra “transgênico”, sua proibição está implícita quando cita o uso da “biotecnologia moderna”, uma vez que algumas sementes editadas em laboratório são permitidas na Venezuela.
Todo organismo transgênico foi geneticamente modificado, pois recebeu uma sequência ou uma parte de um DNA de outro organismo que, em alguns casos, pode ser até de outra espécie. Já organismos que foram geneticamente modificados mas não receberam nenhum gene de outro organismo são chamados de híbridos e não podem ser considerados transgênicos.
Sementes deste último tipo são permitidas na Venezuela e, embora não possam ser chamadas de transgênicos, respondem a interesses de “controles corporativos da alimentação”. Essa é a opinião de Eder Peña, biólogo do Instituto Venezuelano de Investigações Científicas (IVIC), que explicou ao Brasil de Fato os impactos que a ação do agronegócio e de cultivos transgênicos podem ter na ecologia do país.
“Uma semente transgênica, introduzida com fins de rendimento, pode gerar o desaparecimento de outras variedades dentro de uma mesma espécie, ou seja, uma semente de milho pode substituir sementes crioulas. Um outro ponto é o tema do consumidor, ou seja, uma semente que de alguma maneira era consumida, ao ser substituída e introduzida outra variedade, pode gerar nos consumidores algum tipo de reação que ainda não seja conhecida”, afirmou.
Organismos são geneticamente modificados em laboratórios desde os anos 1970, mas os transgênicos só ganharam força no mercado agrícola no final do século XX e início do século XXI. Ao contrário das sementes tradicionais, as transgênicas dependem de grandes quantidades de fertilizantes químicos que podem agredir o solo e provocar perturbações ecológicas. Além disso, o fato de serem protegidas por patentes acaba criando uma dependência do setor agrícola com as multinacionais produtoras, favorecendo o monopólio de empresas que produzem tanto as sementes quanto os agrotóxicos necessários para o cultivo.
"Esses organismos trazem consigo pacotes tecnológicos que são desenhados pelas multinacionais vinculadas ao mercado agrícola, que são as que controlam os alimentos em nível mundial. Para montar um plano de cultivo com soja transgênica, com milho transgênico, com arroz transgênico, você tem que comprar certa quantidade de glifosato, de pesticidas, certa quantidade de fertilizantes, ou seja, é um pacote completo. Você não pode apenas introduzir uma variedade e pronto. Por trás disso há um negócio, o chamado agronegócio”, explica Peña.
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Até 2020, Bayer, Syngenta, Corteva e Limagrain, quatro das maiores multinacionais agrícolas, controlavam metade do mercado global de sementes transgênicas. No caso de empresas como a Bayer, por exemplo, que comprou a gigante Monsanto, o monopólio é ainda maior, uma vez que controla 98% do mercado de herbicidas para o cultivo de soja transgênica e 79% para milho geneticamente modificado.
Segundo a FAO, a agência para alimentação da ONU, atualmente 29 países cultivam sementes transgênicas e outros 41 permitem a importação de tais produtos. Dois dos três maiores cultivos de transgênicos, inclusive, estão no mesmo continente que a Venezuela: Brasil e Argentina ocupam o 2º e 3º lugar respectivamente em quantidade de área agrícola ocupada por esses cultivos geneticamente modificados, só atrás do campeão Estados Unidos.
Nesse sentido, o artigo 66 da lei de sementes venezuelana busca proteger a produção agrícola do país dessa dependência ao proibir "a outorga de direitos de obtentor e patentes sobre as sementes, assim como qualquer outro mecanismo que promova sua privatização".
“De maneira simples, as patentes que estão vinculadas às sementes são uma maneira de mercantilização da vida. É a mercantilização da vida e a imposição de uma lógica que prega 'vale mais quem tiver mais'. O que estamos vendo é que nos países do sul global nós estamos sendo despossuídos por essas práticas que têm graves efeitos ecológicos”, apontou Peña.
Edição: Arturo Hartmann