Coluna

Sofrimento Yanomami é resultado de visão militar para a Amazônia

Jovem Yanomami - Arquivo OPEB
Os militares querem cancelar leis de proteção, abrir a floresta para o garimpo e alienar as ONGs

 

Por Catarina Vieira Bortoletto, Lucas dos Santos Rocha, Lucas Começanha,  Luiza Zomignan, Rodolfo Vaz e Olympio Barbanti

 

Há 30 anos de sua demarcação, o Território Indígena Yanomami vive um dos piores momentos da história, com o aumento dos conflitos socioambientais por causa da presença de garimpeiros na região. Para entender a permissividade do governo Bolsonaro na exploração da área, é importante conhecer o antigo projeto militar que vê a mineração nas terras indígenas como forma de “integração” à cultura e às relações de mercado, o que evitaria movimentos em favor de uma suposta “internacionalização” da região.

A legalização da mineração industrial e do garimpo em terras indígenas, em especial na Amazônia, é um dos principais objetivos do atual governo federal. Desde o início do governo Bolsonaro, o garimpo encontrou em Roraima novos meios para aumentar a quantidade de ouro exportado ilegalmente. Há muito tempo, Roraima lida com extrações ilegais e sua economia local foi estruturada ao redor dessas atividades. Somente em 2019, foram exportados 194 kg de ouro à Índia, somando US$ 6,5 milhões (cerca de R$ 34 milhões), tornando-se o segundo produto mais exportado pelo Estado, atrás somente da soja, segundo dados do sistema Comex Stat do Ministério da Economia.

Antes, o ouro extraído costumava ser negociado apenas no mercado clandestino e sua origem não constava nas estatísticas do governo. Atualmente, ao menos uma parcela das transações tem integrado os cadastros federais. Investigadores trabalham com as hipóteses de que o garimpo ilegal cresceu tanto que ficou difícil ocultá-lo dos registros oficiais, além da possibilidade de haver um esquema para fraudar a origem do ouro proveniente de áreas indígenas e do contrabando advindo da Venezuela.

Apesar de a legalização das atividades extrativistas ser de interesse pessoal de Bolsonaro, como já manifestou em algumas ocasiões, não se trata de uma ação particular, mas sim um antigo intuito do Exército Brasileiro. A visão dos militares para a Amazônia está fundamentada na percepção da região como detentora de valiosa riqueza natural, ao passo que corresponde a um grande vazio demográfico isolado do restante do país. Isso representaria um risco à soberania e à segurança nacional, já que a presença indígena não é vista como garantidora do domínio nacional sobre a região – pelo contrário.

Durante a Ditadura Militar (1964-1985) e sob o mote do “integrar para não entregar”, defendido pelo general Golbery do Couto e Silva, os militares levaram adiante diversos projetos para ocupação e ‘desenvolvimento’ da Amazônia, como a abertura de estradas e incentivo à atividade mineradora e à colonização, por meio de projetos de assentamento de pequenos agricultores. Também concederam incentivos a latifundiários para compra da terra, derrubada da floresta e implantação de atividades agropecuárias. Em 1983, por exemplo, o governo Figueiredo promulgou o Decreto 88.985, que abriu a possibilidade da mineração empresarial em terras indígenas. Com a redemocratização, a mineração nessas terras voltou a ser proibida por meio da Portaria 692 do Ministério das Minas e Energia (MME), editada em 10 de junho de 1986.

Esses empreendimentos produtivos na região, aliados à concepção de segurança e soberania nacional, têm em comum desconsiderar a ocupação que indígenas fazem do território desde os tempos imemoriais, e, desta forma, negam a esses povos o direito sobre a destinação das formas de uso de seus próprios territórios. O estímulo a tais empreendimentos vem acompanhado da colonização realizada em função de medidas que, de forma direta ou indireta, favorecem a migração de pessoas de outras partes do país para a Amazônia – levando consigo valores culturais e formas de meios de vida que não têm paralelo com a identidade de povos indígenas, ou mesmo de outros povos e comunidades tradicionais habitantes da região.

Contrariando a afirmação da professora Manuela Carneiro da Cunha de que "a sócio-diversidade é tão preciosa quanto a biodiversidade", a lógica militar na busca por uma integração nacional traz demandas para que sociedades indígenas sejam integradas à cultura Ocidental dos imigrantes de origem europeia, dentre outras, que vieram ao Brasil. Não reconhecem a argumentação antropológica de que povos indígenas devem ter sua cultura e identidade reconhecidas e respeitadas – afinal, padronização cultural e étnica é desejo que, ao longo da história, foi defendido por líderes autoritários, antidemocráticos.

Uma análise histórica da doutrina militar, presente nas diretrizes do Exército Brasileiro, mostra que a instituição esteve preocupada em promover um tipo de integração espacial da Amazônia que tem por base a orientação conservadora de extrair ao máximo sua riqueza material. Essa perspectiva também identifica a presença de outros agentes sociais na geopolítica regional, ressaltando preocupação quanto ao papel dos “atores transnacionais públicos não-estatais” — tais como as organizações não governamentais (ONGs). Quer dizer, a leitura de que ONGs possuem uma missão estranha aos interesses patrióticos não é uma novidade da história recente, possui um rastro na doutrina militar brasileira.

O site Intercept revelou, em 2019, o “Projeto Barão do Rio Branco”, criado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e coordenado pelo coronel reformado Raimundo César Caldenaro. O projeto é descrito como o maior plano de ocupação e “desenvolvimento” da Amazônia, e prevê o incentivo a grandes empreendimentos que atraiam população não indígena de outras partes do país para aumentar a participação da região Norte no Produto Interno Bruto do país.

O texto cita a preocupação com a presença de estrangeiros na Amazônia, sobretudo em relação à fronteira com o Suriname, país que recebe investimento e imigrantes da China. Além disso, a presença de ambientalistas, ONGs e até da Igreja Católica são vistos com preocupação pelo Exército, por permitirem uma suposta internacionalização da Amazônia – o que implicaria na perda de soberania do Brasil sobre parte de seu território. Ocorreria o perigo, na visão militar, de que ONGs e outros grupos advogassem pela separação de terras indígenas do território nacional.

Outro documento recente vinculado aos militares brasileiros é o “Projeto de Nação” lançado por oficiais generais do Exército por meio do Instituto Sagres, um centro de estudos criado por militares ligados ao general Eduardo Villas Bôas. O projeto traz, novamente, a preocupação com a “incerteza crítica” sobre a integração da Amazônia ao domínio do poder político nacional, o que na prática é uma forma de manifestação de receio sobre a possibilidade de o país perder ingerência na região. Segundo essa visão, outros países e organizações internacionais poderiam argumentar pela separação de terras indígenas do território nacional, pela incapacidade do Brasil de defender direitos humanos dos povos indígenas, e de fazer a gestão sustentável dos recursos naturais de uma floresta que é provedora de bens públicos globais, como a regulação climática, a biodiversidade e a produção de água doce.

Esses oficiais militares defendem que o Brasil deveria assumir para os próximos treze anos, como diretriz, “remover restrições da legislação indígena e ambiental, que se conclua serem radicais, nas áreas atrativas do agronegócio e da mineração” (SAGRES, 2022). A fundamentação para as ações de enfrentamento que Bolsonaro pessoalmente manifesta, assim como aquelas defendidas por membros de seu governo e forças que o apoiam, estão ligadas a essa visão deturpada sobre o significado da Amazônia para um projeto de país.

É deturpada por não considerar os direitos humanos, em especial o direito dos povos indígenas, como fundamental. Deturpada por desconsiderar o significado e as implicações do artigo 225 da Constituição Federal, que propugna que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Deturpada por não reconhecer que temas como mudanças climáticas, biodiversidade, florestas, espécies ameaçadas de extinção, dentre outros, são tratados por regimes internacionais ratificados pelo Brasil. Deturpada porque não reconhece que o capitalismo avançado possui padrões internacionalmente aceitos de performance standards aplicados ao relacionamento das corporações com povos originários. Deturpada porque não reconhece que, somadas todas as áreas, os indígenas controlam hoje apenas 11,6% de um território que foi inteiramente deles.

Após 30 anos de demarcação do território Yanomami, a sociedade civil brasileira deve a essa população respeito e apoio às suas formas de organização e subsistência, e deve garantir que as prioridades desses povos sejam reconhecidas na concepção e implementação de políticas e projetos de governo na Amazônia – como em outras regiões e terras indígenas. Mercados ilegais devem ser cortados e alternativas para sustentar a economia local em Roraima devem ser apresentadas. A questão vital agora é: essa realidade pode ser transformada? Quem estará do lado dos Yanomami para essa mudança?

Aqueles que temem pela perda de soberania brasileira sobre territórios indígenas, e sobre o Yanomami em particular, poderiam estar tranquilos: bastaria garantir que o Estado brasileiro cumprisse suas obrigações constitucionais, bem como os tratados internacionais ratificados, e promovesse a garantia dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato 

Edição: Rodrigo Durão Coelho