Cumprido à risca, como essência de governo que é, o programa de extermínio esparramou-se
Há quem interprete os acontecimentos envolvendo o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips como uma falha do governo Bolsonaro em propiciar segurança aos dois. É uma interpretação benévola que põe a possível tragédia na conta da inépcia governamental. Ou, de modo mais sofisticado, como fez o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que atribui os fatos à existência de um “Estado Paralelo”. Erro. Não é o “Estado Paralelo”. É o próprio Estado.
O que está acontecendo na Amazônia – e para infortúnio de Dom e Bruno abrange também o que acontece com eles – é um projeto. E não circunscreve seu raio de ação deletéria à grande floresta, onde o Ibama e a Funai foram propositadamente desmantelados, abrindo-se a porteira para passar a boiada do crime organizado.
Os postulados da gestão bolsonarista foram dados no dia 17 de março de 2019, dois meses e meio após a posse, em um jantar na embaixada do Brasil em Washington. É o projeto síntese de um governo sem projeto.
Estavam presentes, além de sete ministros, lideranças de direita, onde pontificavam a fundação Heritage e a União Conservadora Americana, e personagens como Olavo de Carvalho e o ex-bruxo de Donald Trump, Steve Bannon.
À parte o grotesco inescapável de um encontro assim - Paulo Guedes chamou Olavo de Carvalho de “líder da revolução” - Bolsonaro discursou afirmando que seu governo não vinha para construir mas para desconstruir. É a frase lapidar que, na sua concisão admirável, define e esclarece tudo. Quem destrói, portanto, não é o “Estado Paralelo” de Pacheco.
Mais perto da verdade está o delegado federal Alexandre Saraiva. Em 2021, ele foi defenestrado da Superintendência da PF no Amazonas. Seu erro foi desafiar o “Estado Paralelo”? Não. Foi comandar a maior apreensão de madeira ilegal da história e acusar o então ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, de dar mole para os saqueadores da floresta.
Nesta terça-feira, Saraiva deu um passo adiante ao citar cinco parlamentares que comporiam o que chamou de “Bancada do Crime” com atuação no Norte do Brasil.
Cumprido à risca, como essência de governo que é, o programa de extermínio esparramou-se. Devasta a natureza na Amazônia e no restante do país. Na economia, opera-se dia e noite o sucateamento e a inviabilização das estatais e seu descarte a preço vil. E a perda é exaltada como um triunfo.
Extinguem-se os empregos, enquanto se destroçam décadas de conquistas dos assalariados presentes nos direitos trabalhistas. Enquanto isso, 33 milhões de brasileiros passam fome e muitos deles engrossam as filas do osso ou disputam bandejas de pés de galinha.
Na Educação, o plano é asfixiar universidades e institutos de pesquisa, à míngua de recursos. A Saúde deixou adoecer e morrer centenas de milhares sem respiradores e sem vacinas mas com cloroquina. Além das fronteiras, o projeto submete a nação a vexames em série através de uma diplomacia vira-latas que provoca espanto ou risos.
Se, ao ouvir falar em cultura, o governo puxa o revólver, nas favelas o Estado só chega representado pelos fuzis AR-15 das muitas polícias, máquinas de cancelar CPFs.
Em falas e gestos, há desprezo e morte direcionados às mulheres, negros, índios, quilombolas, homossexuais, imigrantes.
Tudo se resume em uma palavra: destruição. Ou morte que é sempre a destruição de alguma coisa. Na psicanálise, fala-se na pulsão de vida e na pulsão de morte. A primeira nos conduz ao amor e ao prazer. A segunda nos empurra para a aniquilação.
Sem solidariedade, sem empatia, sem verter uma lágrima pelas quase 700 mil vítimas da covid-19 - ao contrário, delas debochou, imitando-lhes a agonia ao não poderem respirar - Bolsonaro transformou sua pulsão de morte em projeto de Estado.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria