Não acabou o pesadelo trazido pelas fortes chuvas em Pernambuco. No município de Goiana, no litoral norte, o temporal provocou uma inundação no último dia 28 que, entre as consequências, deixou desequilibrados os ambientes de estuário, rio e mar da cidade. Animais como caranguejos, guaiamuns, peixes e mariscos morreram ou estão impróprios para consumo, e especula-se que por conta de contaminação da água por produtos químicos usados pelas indústrias instaladas na região.
A dimensão do prejuízo é imensurável para as 1.500 famílias pescadoras das seis comunidades ribeirinhas da Reserva Extrativista (Resex) Acaú-Goiana, que abrange a cidades pernambucana e Pitimbu e Caaporã, na Paraíba. A rotina dessas pessoas, geralmente, é pescar de dia para vender à tarde e comer à noite. Mas agora a fonte de sustento foi perdida, castigando ainda mais a população que já sofreu duramente os efeitos da chuva na cidade.
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A pescadora Maria Ângela da Fonseca, de 54 anos, perdeu tudo com a enchente. Naquele sábado do dia 28, a chuva fez as águas do Rio Goiana transbordarem sobre a comunidade Balde de Rio, levando embora os pertences que as famílias tanto lutaram para conquistar. A casa de Ângela foi uma das cinco que foram tragadas pela correnteza.
Os documentos, a bicicleta, a canoa que usava para trabalhar, a geladeira em que guardava os pescados, o carro que pagou R$ 6 mil para comprar e mais R$ 3 mil em oficina. Nada ficou. Ângela e os vizinhos só puderam assistir enquanto nove barcos da comunidade desciam rio abaixo. "Muito triste, muito desesperador ver minhas coisinhas indo embora. No outro dia, fui em cima da ponte olhar, e dava vontade de me jogar dentro das águas. Mas eu tive que ser forte", expressa a pescadora.
A dor da perda é grande. E não deverá aliviar tão cedo. “Agora que as águas baixaram que o sofrimento começa para quem sobrevive e vive com os corpos na água e na lama”, afirma. Entre a fauna, a espécie que registrou alta mortandade atípica foi o caranguejo-uçá. Só na comunidade de Carne de Vaca, a população enterrou mais de 5 mil unidades achadas mortas.
“Não tem o que pescar. Vai demorar de 4 a 6 meses para esses caranguejos reproduzirem de novo. Peixe, nessas águas, só daqui a 6 meses. As catadoras de marisco, nessa semana, acharam marisco, colocaram no forno e só fede. Não tem condição de comércio”, fala.
Desde então, já se passaram 20 dias com a atividade econômica paralisada. “Goiana é a única cidade do Brasil que tem quatro colônias de pescadores. 60% da população é pesca. Aqui é uma reserva extrativista, são pescadores e agricultores. Plantam a ratoeira no mangue e vão plantar. E o roçado desse povo desceu tudo. Está um sofrimento muito grande, para pescadores e agricultores”, revela Ângela.
Segundo Ângela, a inundação deixou a cidade cheia de ratos, cobras, e com forte cheiro de esgoto. Goiana é um município sem saneamento, cujo sistema de esgotamento sanitário está em processo de construção agora, via parceria público privada da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) com a suíça BRK Ambiental. A unidade de tratamento de esgoto, que fica às margens do Rio Tracunhaém, ficou totalmente inundada, de modo que os rejeitos domiciliares acabaram vazando para a água.
Quem se aventura para tentar coletar algum pescado sente os efeitos na saúde. “A gente está com coceira no corpo. Tem pessoas da comunidade no hospital com leptospirose. Principalmente nós mulheres, catadoras de marisco que sentamos nessas águas e temos que entrar em contato com o veneno e os micróbios”, diz.
É difícil lidar com a dor, mas Ângela tem nas mãos a tarefa de cuidar dos demais. Ela é uma liderança importante entre os pescadores: é presidenta da Colônia Z14 Balde do Rio, conselheira-titular da Resex Acaú-Goiana, representante estadual de Pernambuco no Movimento de Pescadoras e Pescadores Artesanais do Brasil, militante da Articulação Nacional dos Pescadores, vice-tesoureira da Federação dos Pescadores do Estado de Pernambuco, entre outras representações que assume.
Abrigada desde o desastre na Escola Municipal Manoel Borba, em Goiana, a pescadora tem usado o dinheiro que recebeu de doação para dar assistência aos outros na mesma situação. Remédios, leite e até calcinha são alguns dos itens que tem comprado para os colegas. “Estou que nem São Francisco, pedindo esmola e dando esmola.”
É ela que tem participado das tratativas com o poder público sobre a questão. No último dia 7, a prefeitura anunciou que iria dar um auxílio de R$ 2 mil em parcela única para as famílias que “ficaram sem casas ou que tiveram danos em seus imóveis por conta das fortes chuvas”. Segundo comunicado do município, há 500 pessoas desalojadas e 1.500 deverão ser contempladas com o benefício eventual.
Na visão de Ângela, que se reuniu com o representante do Executivo municipal nesta semana, é muito pouco. “O prefeito diz que é doação, para comprar móveis. Meu guarda-roupa foi R$ 1,5 mil. O que faço com R$ 2 mil? Eu estou sem fogão, só fiquei com uma mesa e uns pratos. Não sou ingrata, não estou dizendo que não serve. Mas vou ter que fazer minha casa com R$ 2 mil. Aqui em Goiana, o milheiro de tijolo é R$ 600. A faca de cimento, R$ 30. A diária de pedreiro é R$ 100, a diária de servente é R$ 50. Não tenho filho, não tenho esposo, não tenho condição de ser servente, o que eu faço?”, desabafa.
Ainda segundo Ângela, o prefeito também teria dito que daria dinheiro para ela pagar um aluguel por pelo menos três meses, podendo se estender até seis. “Mas tem pescador que a casa não caiu, mas está sem pescar faz 18 dias. Tem pessoas que vivem da lama e não vão mais para a maré. Como a gente faz?”, questiona.
Secretário-executivo regional do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Severino Santos conta que os caranguejos mortos começaram a aparecer no último dia 31. Das seis comunidades da Resex, duas vivem basicamente do comércio desse produto.
“Camaçari, no município de Caaporã, na Paraíba, tem 180 famílias e cada uma chega a pescar 800 a mil caranguejos por semana. A outra é povoação é a de São Lourenço, área quilombola em Goiana, cujas principais produções são marisco, peixe e caranguejo. Dessa comunidade, há 210 pescadores inscritos na associação”, contextualiza Severino.
O dano financeiro e ambiental é incalculável neste momento, avalia ele. “Uma semana e meia sem pescar é uma semana e meia de insegurança alimentar e de prejuízo financeiro econômico nessas comunidades”, lamenta.
O Brasil de Fato Pernambuco perguntou à Prefeitura de Goiana se os pescadores que tiveram sua produção afetada receberão algum auxílio específico, mas não teve resposta até a publicação desta matéria.
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Já pelo governo de Pernambuco, a única política pública emergencial para esse público é uma campanha de solidariedade de arrecadação de donativos para catadores de material reciclável e pescadores artesanais afetados pelas chuvas. O ponto de arrecadação fica no Parque Estadual de Dois Irmãos (o zoológico), no bairro de Dois Irmãos, na Zona Norte do Recife. As doações podem ser entregues de terça a domingo, das 9h às 16h. O “Zoo Solidário” é uma iniciativa da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).
A reportagem ainda procurou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que é o órgão federal responsável pela gestão da Resex Acaú-Goiana, para entender se o governo federal irá prestar algum auxílio às famílias atingidas e se está investigando o caso. Também não houve retorno. O espaço está aberto.
Qual seria a causa da morte dos animais?
Desde que Goiana registrou mortandade na fauna após as enchentes, pesquisadores têm se debruçado sobre a questão para tentar responder a pergunta: qual o motivo das mortes? O biólogo marinho Mário Barletta, especialista em Ecologia Marinha e professor do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), estuda há 20 anos o estuário do Rio Goiana, e recebeu amostras coletadas dos caranguejos para fazer a análise.
A pesquisa não está concluída, mas, de antemão, Mário avalia que é improvável que as espécimes tenham morrido somente por conta da chuva. Afinal, tal fenômeno só foi registrado em Goiana e em mais nenhum lugar do estado onde choveu, até agora. Uma hipótese que o especialista levanta é a seguinte: “Existem na região muitas indústrias que, de certa forma, armazenam os efluentes [resíduos] dos produtos das atividades deles em contenção. Alguns desses locais onde guardavam material tóxico na região podem ter transbordado, perderam controle e houve uma contaminação.”
Caso se comprove que ocorreu mesmo essa contaminação, toda a fauna estuarina pode estar comprometida. “Algumas espécies são mais resistentes, mas não quer dizer que estão boas para ser consumidas”, pondera.
Em duas décadas de pesquisa, Mário nunca viu tanto caranguejo morto. E a recuperação desse evento pode ser difícil para a espécie e para todo o ecossistema. “Esse caranguejo-uçá tem uma característica importante: se reproduzem no final do verão. Os machos fecundam a fêmea e trocam de casca. Nesse período [em que estamos] é que a fêmea vai gerar e produzir os ovos fecundados. Se essas fêmeas morreram grávidas, fecundadas, não vão se reproduzir. Com certeza a próxima safra, que seria entre janeiro e março do ano que vem, está comprometida. Vai ter menos caranguejo disponível, e vai ter a mesma quantidade de pescador. Seria interessante saber se essa população que restou teria capacidade de suportar essa pressão”, explica.
Para além da questão da contaminação, a própria eliminação de caranguejos geraria um efeito em cascata que seria sentido por todas as camadas da cadeia alimentar. “No período em que essas fêmeas se reproduzem, muitos peixes estão no estuário para se alimentarem das larvas. Se elas estiverem contaminadas, ou se não houver quantidade suficiente de alimento, esses peixes vão procurar outro lugar para se alimentar. Ou, se reproduzem no estuário e, se não tiver alimento, vão morrer. Não é um evento isolado com caranguejo.”
O biólogo coloca que o ideal seria fazer um monitoramento mensal dos animais desses ambientes, para entender se a concentração do produto poluente continua presente na musculatura dos organismos. “Para isso, seria muito importante ter uma verba destinada para esse projeto. Sem esse tipo de recurso, fica difícil. Toda universidade no Brasil está sem recurso. Seria interessante se o Governo de Pernambuco e os municípios [da Resex] nos ajudassem de alguma forma, subsidiando esse tipo de projeto”, sensibiliza.
Estados investigam
A Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) de Pernambuco, por meio da Diretoria de Fiscalização, também está acompanhando o caso. "Nos últimos dia 2 e 3, uma equipe da Área de Proteção Ambiental (APA) de Santa Cruz, unidade da CPRH, acompanhada por um técnico do Laboratório Professor Adaucto Silva Teixeira, realizou a coleta da água em pontos dos rios Capibaribe Mirim, Tracunhaém, no Córrego do Inferno, no Canal Baldo do Rio e no Rio Goiana", diz a agência em nota.
A água coletada foi encaminhada para análises físico-química e bacteriológica, e a conclusão deverá ser divulgada até esta sexta-feira (17). Segundo o órgão, o resultado poderá subsidiar ações de fiscalização da CPRH, em parceria com o ICMBio, nas áreas da Resex e da APA de Santa Cruz. A Agência está trabalhando em conjunto com a equipe da Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema) da Paraíba, que também coletou e está fazendo a análise da água dos rios que abastecem a Resex no território paraibano.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Elen Carvalho