O barulho dos helicópteros tornou-se corriqueiro na região central de São Paulo, sobretudo nos fins de tarde, desde junho de 2021. Foi quando a Polícia Civil do estado deflagrou a chamada Operação Caronte, uma grande ação policial para combater o tráfico na região conhecida como “Cracolândia”. Batizada em referência ao barqueiro do reino dos mortos da mitologia grega, a operação vem ocorrendo em uma sequência de fases e etapas e já resultou na prisão de 111 pessoas, apreendeu toneladas de drogas e cumpriu 75 mandados de busca e apreensão, em oito inquéritos policiais.
A Caronte gerou episódios de violência, como a morte de Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca, pessoa em situação de rua que, em uma noite de operação, foi baleado no tórax por policiais do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra). Os policiais já confirmaram ter efetuado disparos na ocasião e estão sob investigação da Corregedoria da Polícia Civil. Houve também a agressão, flagrada pela Ponte Jornalismo, a um imigrante angolano pela Guarda Civil Metropolitana (GCM).
Além disso, um relatório da Comissão de Direitos Humanos da OAB registra insultos verbais dos policiais às pessoas em situação de rua, ameaças de morte e prisão e revistas de mulheres por policiais homens. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo questionou a prática de manter grandes grupos de pessoas sentadas por horas sob a mira de armas enquanto policiais cumpriam mandados da operação.
A Polícia Civil alega que as ações da Operação Caronte são fruto de um longo período de investigações que mapeou o modo de funcionamento do tráfico no chamado “fluxo” da Cracolândia e vem prendendo traficantes que seriam responsáveis pelo fornecimento das drogas na região.
Relatórios de inteligência da Polícia Civil que constam em denúncias oferecidas pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) no âmbito da Operação Caronte consultados pela Agência Pública mostram o que a Polícia Civil descreve como o modus operandi do tráfico na Cracolândia. Segundo a investigação, uma organização criminosa movimenta até R$ 200 milhões com a venda de drogas, informação corroborada por um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A reportagem consultou também interrogatórios de presos e depoimentos de testemunhas que constam em denúncias já propostas pelo MPSP.
“Vagões”, “disciplinas”, “travessias”, “salveiros”
Os relatórios de investigação e depoimentos apontam que há uma organização criminosa vinculada ao Primeiro Comando da Capital (PCC) que teria organizado o chamado “fluxo” da Cracolândia. Segundo a polícia, haveria no “fluxo” uma estrutura de comercialização de crack e outras drogas, com ocupação de locais específicos, papéis definidos e atuação subordinada ao comando do PCC.
Segundo a investigação, o tráfico no “fluxo” estrutura-se nos chamados “vagões”. Os “vagões”, chamados também de “feira da droga” por membros da Polícia Civil, são bancas montadas em frente à chamada “feira do rolo”, onde ocorre a venda de produtos como celulares, computadores, roupas e bicicletas, frequentemente oriundos de roubos e furtos. Há uma diferença visual entre os “vagões” e a “feira do rolo”: enquanto “o rolo” ocorre a céu aberto, os “vagões” são cobertos por lonas plásticas, alguns em tendas com armação metálica, e às vezes são utilizados guarda-chuvas. Informações e depoimentos colhidos pela polícia afirmam que só traficantes autorizados pelo PCC podem vender nos “vagões”.
Um traficante preso em janeiro deste ano, na quarta fase da Operação Caronte, afirmou em depoimento à Polícia Civil que “arrendava o espaço [uma barraca] para a venda das drogas pagando a quantia de R$ 250,00 por semana”. O pagamento garantia que ele não seria roubado ou agredido. Ele afirmou que comprava uma carga maior de crack no próprio “fluxo” a R$ 24 o grama e revendia a droga a R$ 35, mas não deu mais detalhes por “temer pela própria vida”.
Uma mulher ouvida pela polícia em dezembro do ano passado falou em valores semelhantes. A depoente, que assumiu traficar crack no local, disse que “foi abordada por um […] membro do ‘comando’ [PCC], o qual passou a lhe fornecer crack para vender. Informa que costumava adquirir a droga por R$ 25,00 o grama, e vendia por R$ 35,00, ficando com a diferença, cerca de R$ 300,00 a cada 25 g vendida”.
Segundo ela, a droga era deixada pelo membro do PCC no começo do dia e ela tinha que pagar um valor fixo a ele. Outros depoimentos também mencionam o pagamento fixo para comercializar drogas nos “vagões”. Outro depoente ouvido pela Polícia Civil diz que “todos os traficantes que têm ‘prato’ na Cracolândia pagam para o comando”. A referência ao “prato” deve-se ao fato de muitos traficantes usarem pratos para porcionar peças maiores de crack nas chamadas “pedras”, porções menores, destinadas ao consumo.
Segundo depoimentos colhidos pela Polícia Civil, o dinheiro devido ao PCC geralmente é pago aos “disciplinas”. A nomenclatura, comum em outros contextos relacionados à atuação da facção criminosa, refere-se aos membros responsáveis por fazer cumprir as determinações da organização (muitas vezes por meio de punições físicas e assassinatos) e solucionar conflitos entre traficantes, usuários e demais participantes do “fluxo”.
“Quando um traficante fica devendo valores ao ‘comando’, é colocado no ‘prazo’. Ser colocado no ‘prazo’, é quando os ‘disciplinas’ concedem um prazo para o traficante pagar o que deve, caso contrário, será sentenciado muitas vezes com morte, braço ou pernas quebradas”, diz uma depoente apontada como traficante.
Outro depoimento, que também confirma o pagamento regular aos “disciplinas” para que se realize o tráfico de drogas, indica que “os disciplinas, além de receberem o valor das mensalidades, são encarregados de resolver as pendências, realizando reuniões periódicas para tratar dos assuntos relacionados ao ‘código de ética’ da organização no interior de locais denominados ‘QGs’”. Os chamados “QGs” são hotéis localizados na região central de São Paulo onde há reuniões dos “disciplinas”, armazenamento do estoque diário de drogas e até episódios de ocultação de cadáveres, segundo a polícia.
Um relatório aponta que os “disciplinas” e outros membros do PCC utilizam-se de usuários de drogas em situação de rua para cumprir as mortes decretadas pela facção e cometer outros atos de violência. Foi o que ocorreu em 2020, segundo a polícia, com o ex-investigador da instituição Fernando de Paiva Assef, esfaqueado aos 45 anos na região da Cracolândia, e com o policial militar Daniel Alves de Lima, cujo corpo foi encontrado em uma carroça conduzida por quatro pessoas em situação de rua no viaduto Orlando Murgel.
Ouvidos pelas autoridades, os homens disseram que não sabiam que havia um corpo no veículo e que foram contratados para se livrar do conteúdo dele. A morte da pessoa em situação de rua Fábio Luiz de Almeida Júnior, conhecido como “Chocolate”, é outro episódio de violência atribuído pela Polícia Civil de São Paulo à ação de pessoas em situação de rua comandados por membros do tráfico, bem como os disparos sofridos por Reginaldo Silva Santos e Adriano Lopes Oliveira, dependentes químicos baleados durante uma operação em junho de 2021 na região, quando viaturas da GCM e da Polícia Militar (PM) foram alvejadas.
Outros papéis identificados pela Polícia Civil na estrutura do tráfico no “fluxo” são os “salveiros”, os “travessias” e os “barraqueiros”. Os primeiros são os responsáveis por dar a ordem para a movimentação do “fluxo”. Aos “travessias” cabe a função de transitar com celulares, dinheiro e drogas das barracas, ou durante a montagem dos “vagões”, para que os traficantes não andem com nada ilícito. Os “barraqueiros” são os responsáveis por montar e desmontar as barracas dos “vagões” de acordo com a necessidade do “fluxo”. A movimentação dos usuários da Cracolândia se dá quase sempre em decorrência das ações de limpeza da Prefeitura de São Paulo, que em geral ocorrem duas vezes por dia nas áreas onde o “fluxo” se concentra. Essas três funções, mais operacionais, são comumente desempenhadas por usuários de crack cooptados pelo crime organizado, que, segundo a Polícia Civil, são chamados de “lagartos”.
“Nós vimos [na investigação] que a Cracolândia era dominada pela facção criminosa, pelo PCC. Eles estabeleceram um núcleo na favela do Moinho que comandava a Cracolândia”, afirma Roberto Monteiro Dias, delegado titular da 1ª Delegacia Seccional, responsável pela região central de São Paulo. “Fizemos apreensões expressivas aqui na seccional centro. Apreendemos 600 kg de cocaína que concluímos ser destinadas ao abastecimento da Cracolândia”, completa Monteiro Dias. Para sustentar essa tese, a polícia baseia-se também em algumas prisões feitas nos últimos meses.
Uma delas foi a prisão de Warlas da Silva Santos, em setembro do ano passado. Ele é tido pela Polícia Civil como o gerente noturno do tráfico na favela do Moinho, comunidade localizada sob o viaduto Orlando Murgel, entre dois ramais da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), local próximo às praças Júlio Prestes e Princesa Isabel, onde estava localizado o “fluxo” da Cracolândia antes das ações da Operação Caronte. Warlas terminou preso pela polícia no interior da favela do Moinho, após algumas tentativas frustradas de capturá-lo.
Em uma delas, em maio do ano passado, a polícia apreendeu na casa dele um tijolo de aproximadamente 1,2 kg de maconha e cerca de R$ 14 mil em espécie. Warlas já foi denunciado pelo Ministério Público e está preso. No dia da prisão, em um imóvel em frente da sua casa, a polícia encontrou drogas e um vasto material para embalagem e distribuição. Relatórios de inteligência e depoimentos de policiais apontam que as drogas teriam, entre outros destinos, o “fluxo” da Cracolândia. Ouvido em juízo, Warlas negou as acusações imputadas a ele.
A reportagem da Pública procurou a sua defesa por telefone, e-mail e WhatsApp. Uma lista de perguntas foi enviada à sua advogada, Fernanda Gabriele Souza, pelo e-mail que consta no processo e por WhatsApp. Ela confirmou o recebimento das perguntas, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação.
Outra prisão que chegou a ser utilizada no discurso policial como evidência da ligação entre o tráfico na favela do Moinho e o “fluxo” da Cracolândia foi a de Leonardo Monteiro Moja, apelidado pela polícia de “Léo do Moinho”. Moja tem uma extensa ficha criminal. Foi preso em 2017, em um hotel no centro da cidade, em uma operação do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), quando foi apontado pelos policiais como o “número dois” da hierarquia do tráfico na Cracolândia. Nesse processo, ele foi sentenciado em primeira instância a mais de oito anos de prisão. Em outro processo, foi condenado a mais de 16 anos por homicídio.
Cumpriu pena até junho de 2021. Nesse mês, estava em progressão de pena na Penitenciária de Valparaíso (SP). Ganhou o direito a saídas temporárias, mas em uma delas deixou de retornar ao presídio. Acabou preso novamente em novembro do ano passado, em uma cobertura na Praia Grande, litoral sul de São Paulo, em uma grande operação policial que buscou foragidos da Justiça na Baixada Santista.
Moja foi citado em relatórios de inteligência da Polícia Civil como “o Comandante absoluto da ORCRIM [sigla policial para organização criminosa] da Comunidade do Moinho, tendo à sua disposição gerentes, transportadores, embaladores, olheiros, seguranças etc., além de dividir a liderança do tráfico na ‘Cracolândia’”. Nos relatórios, são mencionadas informações de inteligência que afirmavam que ele comparecia com frequência a reuniões com uma suposta cúpula do tráfico na favela do Moinho.
Em juízo, porém, investigadores deram depoimentos contrários ao que constava nos relatórios de inteligência. Três policiais afirmaram que a investigação não conseguiu atrelar Moja aos fatos apurados na investigação da Operação Caronte. Em maio deste ano, o promotor Fernando Henrique Moraes de Araújo, do MPSP, pediu sua absolvição.
Ouvido em audiência, Moja negou as acusações, afirmou que “a acusação de que comanda o tráfico de drogas na Comunidade do Moinho é uma criação da mídia e da polícia civil” e negou manter qualquer contato com a favela do Moinho.
Procurado pela Pública, o advogado Rodrigo Antunes Benetti, que defende Moja em um processo relacionado à Operação Caronte, afirmou que “Leonardo Monteiro Moja não faz parte de qualquer organização criminosa”, conforme, segundo ele, documentação da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). “Não é a primeira vez que ele [Moja] é acusado de fatos ocorridos na região da ‘Cracolândia’ ou ‘Comunidade do Moinho’, sendo que nas outras oportunidades sempre foi demonstrada sua inocência”, completou Benetti. “Leonardo não é acusado por processos decorrentes da Operação Caronte.
Ele está sendo processado sob a acusação de tráfico e associação para o tráfico em um único processo de 2022, ainda em andamento, onde, de fato, após toda a fase de investigação policial, instrução processual, diversas audiências, investigações, perícias e produção de provas, o Ministério Público se posicionou pela sua absolvição.” Moja está preso cumprindo pena por condenações anteriores.
Processos criminais mais antigos consultados pela reportagem já apontam esse vínculo logístico entre o tráfico da favela do Moinho e o “fluxo” da Cracolândia. Em um deles, um homem preso em 2020 com uma carga de 300 gramas de crack e uma balança de precisão admitiu ter buscado a droga no Moinho e disse que estava levando para venda no “fluxo” da Cracolândia.
“É necessário um trabalho de longo prazo”, avalia especialista em segurança pública
“A ação policial mais importante para diminuir o chamado ‘fluxo’ seria diminuir a quantidade de cocaína que entra lá [na cracolândia], mas pra isso você precisa ter investigação. Precisa ter equipe dedicada a isso, várias equipes”, afirma Guaracy Mingardi, analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Você tem que pegar quem está abastecendo [o “fluxo” da Cracolândia]. Isso nunca vai acabar, mas você torna mais difícil, mais caro [o custo do tráfico]. Para isso, você tem que ter bastante gente investigando. É um trabalho de longo prazo. É preciso produzir provas, ir atrás. Principalmente do abastecimento”, completa Mingardi.
Conforme apurou a Folha de S.Paulo, 64 dos 105 alvos da Operação Caronte até a publicação desta reportagem eram os chamados “lagartos”, usuários de drogas cooptados por membros do PCC. Nos processos consultados pela Pública, há um material probatório mais robusto produzido contra os traficantes menores, os donos dos “pratos”, que arrendam um local nos “vagões” para venda de drogas. Pesam contra estes imagens feitas por policiais infiltrados que flagram as ações de tráfico. Contra traficantes maiores, é mais comum a referência a informes de inteligência que vinculam determinados indivíduos ao tráfico, sem mais informações. Já estão ocorrendo absolvições de pessoas imputadas por tráfico em ações da Operação Caronte.
Em um processo decorrente de uma ação policial de janeiro deste ano, a Justiça soltou nove de 14 pessoas imputadas por tráfico, conforme revelou o colunista do UOL Josmar Jozino. Quatro réus foram absolvidos por estarem portando pequenas quantidades e não haver provas suficientes, segundo a Justiça, para caracterizar o crime de tráfico.