A lógica colonial provoca apagamentos das culturas que não são eleitas, mas representam o estado
O que você já ouviu falar sobre Santa Catarina? E a comida de lá? Geralmente, as comidas associadas aos estados do sul do país são as influências europeias. Mas, o que é muito pouco abordado são as influências indígenas na cultura alimentar do estado.
É exatamente sobre essa perspectiva das práticas alimentares tradicionais é que a história das seis regiões do estado é contada em sete episódios do podcast ‘Memória do Paladar Catarinense', idealizado por Rober Corrêa e Sayonara Salum. O projeto foi selecionado pelo Edital Aldir Blanc 2021 – executado com recursos do governo federal e Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, por meio da Fundação Catarinense da Cultura.
O historiador e roteirista Rober Corrêa explica que a motivação da série surgiu da necessidade de registrar as tradições culturais que correm o risco de serem perdidas diante da lógica colonial do estado.
“Trata-se de um projeto de patrimônio cultural e pensamos na alimentação do ponto de vista imaterial. O estado de Santa Catarina salvaguarda algumas práticas e saberes culinários, muitas técnicas vêm sendo apagadas ou não tendo o reconhecimento devido, então o projeto procura colaborar com o registro dessas técnicas e com a divulgação desses saberes que constituem o modo de viver e de alimentar da população do estado”.
A cozinheira Sayonara Salum, que também participa do quadro ‘Cozinha de Verdade’, do programa Bem Viver, do Brasil de Fato, comenta que a série conta a história de Santa Catarina por meio da alimentação, mas em uma perspectiva que vai além dos padrões alimentares ou ingredientes utilizados em determinada culinária, mas também o contexto histórico, geopolítico, econômico e social do estado, que é a base do desenvolvimento da cultura.
“Começa na culinária originária indígena, principalmente com as populações Xokleng, Guarani e Kaingang e passa pelas seis regiões do estado: Litoral, Serra e Planalto, Vale do Itajaí, Norte, Oeste e Sul catarinense. Para cada uma das regiões, elegemos um prato típico para fazer e saborear”.
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Sayonara dá exemplo de como conhecer a alimentação pode ser um modo de entender como a identidade cultural foi construída.
“Os saberes e fazeres da cultura alimentar nos atravessam e nos constituem. Por exemplo, os indígenas do litoral já preparavam a farinha de mandioca, e quando os açorianos aqui chegaram vão adaptar os engenhos de vento dos açores usados para fazer farinha de trigo às técnicas indígenas de fazer farinha, por isso essa característica de uma farinha tão fina que se diferencia das demais regiões do Brasil”.
No final de cada episódio são oferecidas outras comidas típicas, algumas delas são de origem indígena.
“Dentre as receitas que os ouvintes vão poder testar na sua casa, tem o ẽmĩ que é um bolo azedo uma comida típicas dos kaingang feito na cinza de milho; tem uma receita dos Xokleng que é a kapug, que é uma massa de pinhão feita na brasa dentro da taquara, que também é um alimento que pode ser consumido um tempo depois”, diz o idealizador do projeto.
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Corrêa fala ainda que a série traz receitas com influências dos povos europeus na culinária catarinense, como é o caso da fortaia, que é a polenta cortada no fio, doce de gila, herança portuguesa, o chucrute de repolho e a cuca recheada de frutas, espécie de bolo, receita predominantemente alemã, bastante difundida não só em Santa Catarina, mas em toda região do sul do país.
Como forma de ampliar o acesso ao conteúdo, Sayonara e Rober transformaram os roteiros de podcast em livro.
Edição: Douglas Matos