Ao falar sobre o assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, a repórter Patrícia Campos Mellos é enfática: "É um sintoma de uma escalada de violência e de hostilidade contra indigenistas, jornalistas, cientistas, artistas, que é uma marca do atual governo."
Em entrevista à DW Brasil, a premiada repórter e colunista da Folha de S.Paulo afirma que o clima de antagonismo contra jornalistas no governo do presidente Jair Bolsonaro dificulta o exercício da profissão. "A retórica do governo é uma retórica desumanizadora de jornalistas. E há uma parte da população que acredita, sim, que a imprensa é inimiga do povo, que é comunista, que é fake news. Se você tem um presidente e seus aliados que repetem isso todos os dias, isso entra na cabeça das pessoas."
Atualmente diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e autora do livro Máquina do Ódio: Notas de uma Repórter sobre Fake News, entre outras publicações, a jornalista já foi alvo de uma série de insultos devido a seu trabalho, vindos inclusive do próprio Bolsonaro.
Durante a campanha eleitoral de 2018, a repórter investigou e desvendou um esquema de envio de mensagens em massa, via WhatsApp, contra o PT, patrocinado – e não declarado – por empresários que apoiavam o então candidato Jair Bolsonaro. A reportagem forneceu elementos para a CPMI das Fake News, e insultos contra a jornalista viralizaram. Ofensas sexistas proferidas por Bolsonaro e por seu filho, Eduardo, deram em processos – ganhos pela repórter.
Nesta segunda-feira (20/06), a jornalista participou de um painel sobre os limites entre jornalismo e ativismo na conferência Global Media Forum, realizada pela Deutsche Welle (DW) em Bonn, na Alemanha.
"Obviamente a gente tem que ter em mente que cobertura neutra é uma utopia, mas temos que tentar ser equilibrados", considera. "Mas nem tudo tem dois lados. Fatos não têm dois lados. Não existe Terra plana. Não existe ouvir gente que não acredita em covid, isso não é equilíbrio", considera.
DW Brasil: Após os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na Amazônia, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e organizações de defesa da liberdade de expressão e de imprensa criticaram declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o caso e manifestaram preocupação com a liberdade de expressão e de imprensa no Brasil. Como você descreveria o momento enfrentado por profissionais de imprensa no país, e como o caso Bruno e Dom se encaixa nesse contexto?
Patricia Campos Mello: Bom, eu acho que o assassinato do Dom e do Bruno é um sintoma de uma escalada de violência e de hostilidade contra indigenistas, jornalistas, cientistas, artistas, que é uma marca do atual governo. Você cria um clima de antagonismo e hostilidade a esses profissionais, principalmente jornalistas, que meio que vira um sinal verde para a violência. Na Amazônia, como foram desmantelados órgãos de fiscalização e você tem esse posicionamento do governo, que dá muito apoio a garimpeiros ilegais, pescadores ilegais, você tem todo esse caldo que deixa as pessoas se sentindo autorizadas à violência e contando com impunidade.
Toda essa retórica do governo é um retórica desumanizadora de jornalistas. Se você pegar as palavras que o presidente Bolsonaro usou para se referir ao Dom, dizendo, primeiro, que ele embarcou numa aventura, que ele não era bem visto… Mesmo quando ele [Bolsonaro] estava descrevendo se iam conseguir encontrar ou não os restos mortais, é toda uma retórica desumanizadora, você transforma os jornalistas em inimigos. Isso tudo cria um ambiente muito difícil para ser jornalista no Brasil hoje em dia porque tem uma parte da população que está influenciada por isso. Há uma parte da população que acredita, sim, que a imprensa é inimiga do povo, que é comunista, que é fake news, todas essas coisas… Se você tem um presidente e seus aliados que repetem isso todos os dias, isso entra na cabeça das pessoas.
Como você mencionou, Bolsonaro chegou a dizer que Dom Phillips, que vinha se dedicando a temas ambientais nos últimos anos, era malvisto na Amazônia e tinha que ter mais que "redobrado a atenção para consigo próprio" antes de se deslocar para a remota região do Vale do Javari, onde foi assassinado. De que maneira esse tipo de declaração do presidente contribui para um clima de hostilidade em relação a jornalistas?
Primeiro, o presidente Bolsonaro culpa a vítima. E põe na vítima a responsabilidade. Em vez de dizer: "Olha, nós temos um problema na Amazônia, existe uma expansão de atividades ilegais." Isso cria uma tensão com indigenistas, que estão tentando defender os índios, e com os jornalistas, que estão tentando alertar [para o problema]. Ele [Bolsonaro] coloca a culpa no jornalista, no indigenista, e fica ali posicionado ao lado das pessoas que estão violando a lei. Então você tem todo esse grupo de pessoas que se sente autorizado e endossado pelo presidente da República a ações violentas, ações agressivas contra jornalistas.
Além de repórteres que cobrem meio ambiente, jornalistas mulheres em geral enfrentam dificuldades crescentes em seu trabalho diário no Brasil. Segundo uma pesquisa divulgada recentemente pelas organizações Gênero e Número e Repórteres Sem Fronteiras, 86% das jornalistas mulheres e/ou LGBT entrevistadas afirmaram que a situação piorou no governo do presidente Jair Bolsonaro. Como você enxerga esse cenário?
O cenário piorou muito. É bom a gente lembrar que a animosidade entre jornalistas e governantes é uma característica comum. Não começou neste governo. É do trabalho do jornalista ser chato. Jornalista tem que investigar, não é assessor de imprensa, certo? Agora, o que aconteceu neste governo está além de qualquer animosidade natural porque existe um estímulo em relação a esse tipo de ataque, especificamente em relação às mulheres.
Tem essa pesquisa e várias outras mostrando ataques misóginos. Ou seja, não é que você tem comentários online dizendo "sua matéria é uma porcaria" ou "sua matéria está errada". Isso tudo é legítimo. A crítica é super bem-vinda. Mas o que a gente tem é: "você é velha", "você é feia", "você oferece sexo", "o seu marido é corrupto", tudo muito sexualizado, e isso tem um efeito como se fosse uma censura. Por quê? Porque se você é uma jornalista mulher e vê o que estão fazendo com as jornalistas mulheres, você fala "eu não quero me expor, eu não quero passar por isso".
Esse efeito-exemplo, esse efeito de silenciamento é muito ruim para mulheres, e mais ainda para mulheres negras, mulheres LGBTQIA +. Isso tudo, na realidade, atua como uma censura paralela, porque é uma junção de intimidação com ameaças mesmo. Você tem várias jornalistas que sofrem ameaças. Ameaças de estupro, ameaça em relação aos familiares, assassinato de reputação. Tem todas essas campanhas, e coisas muito sexualizadas. Isso é uma marca muito grande desse governo.
Você acaba de participar de um painel sobre os limites entre jornalismo e ativismo na conferência Global Media Forum, realizada pela Deutsche Welle (DW) em Bonn, na Alemanha. Num momento de polarização política como o vivido no Brasil e em que o público busca cada vez mais consumir notícias que reflitam seus próprios pontos de vista, jornalismo e ativismo acabam se misturando ou é possível manter uma cobertura neutra?
Obviamente a gente tem que ter em mente que cobertura neutra é uma utopia. A gente nunca consegue ser completamente imparcial. Mas a gente tem que partir do pressuposto de que a gente tem que tentar ser equilibrado. Se você não tem uma divisão entre o que é ativismo e o que é jornalismo, o jornalismo perde. Jornalismo e ativismo podem se ajudar. Os ativistas podem ajudar a amplificar reportagens factuais, por exemplo. Podem alertar jornalistas, ser fontes de jornalistas. Mas, se você, como jornalista, começa a fazer ativismo por causas, isso afeta a sua credibilidade.
Como pode você dizer "ah, mas eu quero defender a democracia..."? Você pode defender a democracia. Sabe como? Vai lá e faz uma reportagem sobre o que estão fazendo com o orçamento, sobre escândalo de corrupção, sobre remédio que está faltando no hospital. Isso é um jeito que o jornalismo dá para você ajudar e fazer as coisas nas quais você acredita. Tem uma frase muito boa do Martin Baron, que foi diretor [editor executivo] do Washington Post durante o governo Trump, que também era um governo que atacava jornalistas. O Baron falava assim: "We are not at war, we are at work" (não estamos em guerra, estamos trabalhando).
A gente [jornalistas] não é oposição. A gente vai investigar qualquer um: o governante, a oposição, e tem que se manter desse jeito. Se a gente se engaja no ativismo, a gente toma partido. E, de novo, isso não é fazer falsa equivalência. Nem tudo tem dois lados. Fatos não têm dois lados. Não existe Terra plana. Não existe ouvir gente que não acredita em covid, isso não é equilíbrio.
Você inclusive citou isso no painel do qual participou no Global Media Forum. Pelo que entendi, conforme a sua visão, há um lado que simplesmente não deve ser considerado.
Sim, eu lembro de duas coisas sempre: o Obama, por exemplo, algumas pessoas acham que ele nasceu no Quênia, outras acham que ele nasceu no Havaí. Ele nasceu no Havaí. Não tem dois lados. Ou como saiu no New York Times, depois de uma declaração do Trump: "segundo alguns especialistas, tomar detergente não cura covid". Alguns especialistas não, todos. Tomar detergente não cura covid. Então a gente tem que ter muito cuidado se vai abrir espaço para uma coisa que não é uma questão de opinião. É uma questão factual: existe o que é verdade e o que é falso. Se você está tratando de opinião, tem gente que defende o direito ao aborto, tem gente que é contra o direito ao aborto, por exemplo. Tudo certo. Eu acho que tem que dar espaço. Mas, de resto, não.
Você publicou uma série de reportagens sobre a disseminação de fake news via WhatsApp no contexto das eleições presidenciais de 2018. O que mudou desde então? Que papel deve ter a desinformação nas eleições deste ano?
Algumas coisas mudaram. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fez uma resolução proibindo o disparo em massa de conteúdo político. Naquela época, em 2018, não havia uma proibição para disparos em massa. Você só não podia fazer sem declarar os gastos para o TSE, tendo empresas pagando ou de propaganda negativa, de ataques. Hoje em dia, tem uma resolução, é proibido fazer disparos em massa. O próprio WhatsApp, que no começo não admitia que a ferramenta tinha sido usada [para tais fins], eles admitiram e começaram a processar. Eles processaram várias das agências de marketing que intermediavam isso. Isso quer dizer que o problema está resolvido? Não.
Ah, e tem outra coisa: teve uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado em relação, justamente, a esse caso, em que a chapa não foi cassada, mas foi estabelecida uma jurisprudência de que, se você usar disparos em massa, na tentativa de manipular a eleição, com notícia falsa, isso pode gerar cassação de chapa. Então estabelecer uma legislação resolve? Não, não resolve. É muito difícil você fiscalizar. Hoje em dia, há uma quantidade brutal de desinformação circulando no Brasil no Telegram, no WhatsApp, com disparo em massa, [e também] sem disparo em massa, só nos grupos, você tem uma série de YouTubers e blogueiros e sites supostamente noticiosos, que a gente chama de "junk news sites", que são muito compartilhados nesses grupos. Então esse problema da desinformação, de você estabelecer um ecossistema paralelo de informação, ele continua existindo.
E nesta eleição a gente tem uma coisa um pouco mais grave, que é um ataque mais frontal contra a integridade eleitoral. O que o presidente Bolsonaro vem fazendo em relação a levantar suspeitas infundadas sobre a urna eletrônica, sobre a contagem dos votos e dizer que o resultado só vai ser confiável se houver uma auditoria independente ou uma contagem paralela, isso é… A Maria Ressa [jornalista filipina, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2021] até falou aqui no Global Media Forum: como é que você pode ter uma eleição com integridade se você não tem integridade dos fatos? Se você tem uma manipulação dizendo que não se pode confiar no sistema eleitoral, isso coloca em risco todo o processo eleitoral. Então a desinformação que está circulando desta vez, que é o "stop the steal" versão Bolsonaro, uma cópia do que Trump fez, é uma desinformação muito grave e muito perigosa em relação a deslegitimar o processo eleitoral brasileiro.
E nesse sentido, justamente, você percebe alguma ameaça concreta à democracia brasileira?
Eu acho que existe uma tentativa antecipada de questionar o resultado eleitoral. É como se fosse um plano B: se o candidato perde, ele vai dizer que a eleição foi roubada. Nesse sentido, é um ataque às instituições democráticas você espalhar informações falsas sobre o processo eleitoral. Então, sim, eu acho que existe um ataque a instituições democráticas.
E, sendo assim, você acha que as autoridades brasileiras estão fazendo o bastante para combater fake news? Já houve mudanças e avanços em relação a 2018, como você mesmo citou há pouco. Mas isso é suficiente?
O TSE está fazendo um bom trabalho, eles têm toda uma atenção para o combate à desinformação, principalmente porque para isso o melhor jeito é aumentar o alcance da informação de qualidade e da checagem de informação. Infelizmente, não é fácil fazer isso. Não é fácil fazer a informação de qualidade, a informação correta, viralizar. A mentira circula muito mais rápido. Isso tem muito a ver com algoritmos, com a estrutura de incentivos das plataformas. Eu acho que as autoridades reconheceram o problema de 2018, que, não é que estava fora do radar, mas teve muito menos atenção. Acho que [a desinformação] recebe atenção das autoridades, mas é um desafio muito grande. Não é uma ação governamental que vai resolver.
Você mesma foi alvo de uma série de ataques por seu trabalho, incluindo insultos sexistas do presidente, Jair Bolsonaro, e de seu filho, Eduardo Bolsonaro. Mesmo assim, seguiu adiante com suas reportagens, tendo conquistado uma série de prêmios. O que lhe motiva a seguir adiante?
Eu sou teimosa. Eu acho que quanto mais tentam fazer eu parar de investigar uma coisa, aí que eu quero investigar. Então eu diria que não é nem um sentimento muito nobre, eu acho que é mais uma teimosia, porque eu falo assim: "Eu não vou parar de investigar porque estão tentando me intimidar. Eu não vou parar de trabalhar." Não é fácil, e eu vejo isso [acontecer] com vários jornalistas. Tem um custo psicológico? Claro que tem, [também] para a família. As ameaças não se restringem ao mundo online. Começam online e vão para o mundo real. Começam a ligar no seu telefone, a te confrontar na rua. Mas, para mim, quanto mais isso acontecia, com mais "sangue nos olhos" eu ficava. Eu falava assim: "Se teve essa reação é porque tem mais coisa, eu tenho que investigar mais."
Ainda em relação ao trabalho do jornalista, você acredita que daqui a algum tempo, em um período como cinco anos, dez anos, a relação entre público e jornalistas, que tem se tornado cada vez mais violenta principalmente por meio da internet e das mídias sociais, pode se tornar mais sóbria? Ou você acredita que esse é um caminho sem volta?
Eu acho que são duas coisas: primeiro, a gente [jornalistas] tem que se educar também [para entender] por que existe uma grande parcela do público que não acredita no jornalismo profissional ou está simplesmente se desligando, [com uma atitude] como "eu não quero saber de notícias". O que a gente pode fazer para melhorar, para tornar o conteúdo e a informação de qualidade mais atraentes? Sem, obviamente, apelar para as mesmas armas que as pessoas que trazem desinformação.
Por outro lado, há um público que consome somente a notícia com a qual ele concorda, que endossa a visão dele, que acha que é entretenimento, [algo como] "eu vou escolher o canal de que eu gosto" ou "vou escolher o jornal de que eu gosto, que é o jornal que fala o que eu quero ouvir". Não é assim.
Infelizmente, a gente não é um concurso de miss simpatia. A gente vai ter que dar notícia chata. Você acha que notícia sobre o aquecimento global dá muito clique? Não dá. Mas a gente tem que publicar. Eu espero que tenha um amadurecimento dos dois lados: da gente [jornalistas] para entender o que estamos fazendo errado e como fazer para viralizar a informação de qualidade, e de algumas pessoas de entender que jornalismo não é como escolher um programa [de TV]. Você não vai escolher somente o jornal com que concorda ou que fala o que você quer ouvir. Infelizmente, nem toda notícia vai ser super popular, ou leve, ou vai ter o mesmo posicionamento político, ou vai falar bem do seu candidato. Infelizmente, não é isso. [Jornalismo] não é um concurso de miss simpatia.