É preciso esperançar na mesma dimensão de Paulo Freire
Por Marília Lomanto Veloso*
“Trincheras de ideas valen más que trincheras de piedra”.
José Martí
“De nada valem as ideias sem homens que possam pô-las em prática”.
Karl Marx
“Sem sequer poder negar a desesperança como algo concreto e sem desconhecer as razões históricas, econômicas e sociais que a explicam, não entendo a existência humana e a necessária luta para fazê-la melhor, sem esperança e sem sonho”. (Paulo Freire, Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido).
Esperança, esperançar, esperançando. Paulo Freire recupera no tempo infinito o sentimento de enxergar o futuro com energia militante de quem não perde o olhar do passado, “vê” o presente que atravessa e “espia” com esperança o que pode mudar na linha do horizonte que se chama utopia.
Essa perspectiva “esperanceira” não pode escapar de quem faz da pesquisa não um amontoado de discursos acumulados na história para explicar processos recuados de sobrevivência, mas um campo dilatado de experiências dos sujeitos “subviventes” das ruas, dos campos, das florestas, das águas, dos morros, invisibilizados e oprimidos pelo modo de produção capitalista, com a cumplicidade e subserviência das instituições “republicanas” que trapaceiam com suas funções de garantes de direitos desses sujeitos que a necropolítica assinala como “corpos matáveis”.
A mídia hegemônica é uma das aliadas eficientes desse distúrbio contemporâneo, selvagem, aporofóbico e pleno de desigualdades. Inábil na sua incapacidade de capturar os processos de "democratização” da burla política, da ostensiva destruição do patrimônio público, esse aparato ideológico escolhe as imagens que exibe em seus “boletins festivos”, sempre acirrando a luta de classes com a visão de mundo dos patrões, deixando de traduzir os fatos na realidade e nas contradições sociais, políticas e econômicas de suas causas.
Nicolau Maquiavel em sua obra O Príncipe, ensina que “Há duas maneiras de lutar: com força e com leis”. Nesse sentido, vale incluir o sistema de justiça como outro ingrediente de fôlego ideológico e dimensão significativa na cumplicidade com o cenário de barbarismo “legal” dominante no país.
A leitura das reflexões de Pedro Serrano sobre o histórico do sistema de justiça, aponta que no século XX, as estratégias dos mecanismos de submissão ao capitalismo se pautaram nos governos de exceção, nas ditaduras militares e nos golpes. No século XXI, esses governos dão lugar a medidas de exceção, não mais a supressão de direitos para a sociedade em sua totalidade, mas na eleição de um inimigo destituído de qualquer direito.
No primeiro mundo, o Poder Executivo é o soberano e elege como inimigo o estrangeiro, o terrorista. Na América Latina, o sistema de justiça age como substituto do poder soberano, com um universo de leis para aplicar e em consequência dessa inflação legislativa, quase toda conduta humana pode ser punida. Branca, rica e subjugada ao poder dos coronéis, esse o perfil histórico da justiça, a mesma do ativismo judicial do século XXI em que judiciário e ministério público agem como partidos políticos sem representação popular, por escolha ideológica.
Nessa conjuntura de democracia em escombros, de punitivismo como bandeira da manutenção da ordem, onde as desigualdades são acentuadas, as forças conservadoras avançam, ocorrem a desmobilização dos movimentos sociais, os retrocessos civilizatórios paralelos à expansão de discursos de ódio de um estado permanente de tensão por incompletude democrática.
Nesse contexto, o Seminário comemorativo dos dez anos do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, IPDMS, que aconteceu na Universidade de Brasília UNB, significou o esperançar na expectativa de um novo espaço de disputa, de abertura de trincheiras de onde brotaram ideias inspiradoras de uma rebeldia coletiva que tensiona e reescreve as verdades postas.
O encantamento do acontecer do Seminário do IPDMS provocou reflexões que incentivam a construção de práticas de insurgência para o enfrentamento do atual cenário político/jurídico do pais, exigindo da sociedade, por todas as suas instancias e forças populares, estratégias coletivas de resistência, na exata interpretação da força a que se refere Maquiavel. Nesse sentido, importa um espaço de debates onde fluem, dialeticamente, narrativas que sintonizam o florescer da juventude e a maturidade dos que sulcaram trilhas ao longo dos anos de embate na perspectiva histórica e pedagógica de contribuir para a transformação da realidade.
É emblemático o acontecer do evento no ambiente da Faculdade de Direito, onde a história deve ser recontada a partir de processos de inclusão negada à população “esfarrapada”, destituída e despida de direitos e de dignidade. A Universidade, na concepção de edifício da doutrina e de todo o sistema de incriminações, contribui na formulação de ideias e de conceitos para identificar e significar o mundo, entender a realidade, interpretar e transformar essa realidade. Desse modo, é expressivo o acontecer de debates que vitalizem a reinvenção do direito, que historicamente serviu (e serve) de instrumento às classes no poder e exige ser reconfigurado para reconhecer nos movimentos sociais outros modos e formas de direito capturados e experimentados nas práticas sociais.
Configura-se o Seminário, ainda, como um processo democrático de construção de espaços com pautas que avançam para a interlocução entre a academia e os movimentos sociais, para a consolidação da pesquisa como equipamento essencial para a formulação de políticas concretas de intervenção na realidade.
Apresenta-se também, um momento animador para o diálogo com Paulo Freire apontando a presença de jovens e de adolescentes nas ruas criticando e exigindo seriedade e transparência, enquanto anuncia o povo nas praças públicas, “uma esperança, [...] nas esquinas das ruas, no corpo de cada uma e de cada um de nós [...] como se a maioria da nação fosse tomada por incontida necessidade de vomitar em face de tamanha desvergonha”.
Um olhar para a excelência acadêmica, metodológica, político-pedagógica e social do Seminário do IPDMS indica os desafios postos para a sociedade se organizando como sujeito do processo de “recuperação democrática”, as forças populares como “sujeitos históricos da transformação”, reestruturando a sociedade “de baixo para cima”.
E para cumprir esses desafios, tornar as trincheiras de ideias mais sólidas e resistentes que as pedras, é imprescindível a soma de forças do coletivo, sobretudo, de esperança, como necessidade ontológica que “precisa de prática para tornar-se concretude histórica”.
É preciso esperançar na mesma dimensão de Paulo Freire quando afirma que “não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã”.
Que o esperançar espraiado no Seminário do IPDMS se transforme em um fazer extraordinário e cotidiano.
“Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução” (Che Guevara).
*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS, Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro da AATR, da RENAP e da ABJD.
**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo