A atual gestão do governo federal pode ser considerada, depois do regime da ditadura militar-civil que governou o Brasil por 21 anos, o período mais hostil às universidades públicas brasileiras e à ciência, de modo geral.
O corte de R$ 3,7 bilhões anunciado recentemente deve ser mensurado não como exceção para atender às demandas de reparação salarial dos servidores públicos federais, mas como mais uma ação tática de fustigamento visando o enfraquecimento do ensino superior público nacional.
Afinal, por que destruir o que funciona?
1 – Ciência X anti-intelectualismo e anti-cientificismo
A atuação das universidades públicas no combate à pandemia da Covid-19 foi responsável pelo confronto direto com a postura anti-intelectualista e anti-científica adotada pelo regime do governo Bolsonaro.
O discurso da extrema direita em ascensão mundial faz uso de táticas retóricas de coação, intimidação, desvio do foco intencional do do debate, produção de notícias falsas, lançamento sistemático de cortinas de fumaça para dominar a agenda midiática com pautas secundárias com o objetivo de “passar a boiada”, como disse o ex-ministro do Meio Ambiente, Eduardo Salles.
A produção de pesquisa e ações de extensão da universidade pública no combate à pandemia foram responsáveis por grande parte das medidas bem sucedidas adotadas no país.
Frente à postura irresponsável do governo federal, as universidades apresentaram diariamente nos telejornais e por meio de suas televisões e rádios universitárias dados epidemiológicos, avaliações do cenário da pandemia, contra-posições àquelas adotadas pelo governo contra máscaras, o lockdown e demais medidas de afastamento social, produção de máscaras, pesquisas sobre o impacto sistêmico da Covid-19 sobre o corpo humano, tratamentos visando a recuperação da doença, etc.
2 – Ações afirmativas e expansão da rede de universidades públicas
As medidas de ação afirmativa, inclusão social, expansão das universidades públicas e institutos federais para o interior do país, por meio do programa Reuni, são responsáveis por consistente alteração da composição étnico-racial do perfil do segmento estudantil das universidades públicas.
Esse fato não caminhou em sentido oposto ao da excelência acadêmica, pelo contrário, foi o responsável pelo aumento da quantidade e qualidade das pesquisas produzidas, pela ampliação do número de objetos de pesquisa, além do impacto sócio-econômico-político nas cidades do interior do país, promovido pela absorção da mão de obra qualificada em diversas áreas.
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A adoção das cotas no ensino superior brasileiro – a lei federal data de 2012 – foi responsável pela mudança do perfil do segmento discente das instituições.
O caso da Universidade de Brasília, a primeira federal a adotar o sistema de cotas para afrodescendentes, em 2004, é emblemático, conforme aponta reportagem conjunta das secretarias de comunicação da UnB, UFG, UFPA e UGRGS: “Em 7 de junho de 2003, a edição impressa do Jornal do Brasil destacou que a UnB tinha apenas 2% de graduandos negros. Em uma década, a política afirmativa mudou esse cenário: no primeiro semestre de 2013, pretos e pardos somavam 31% dos graduandos, segundo o Decanato de Planejamento, Orçamento e Avaliação Institucional (DPO/UnB). Seis anos depois, pretos e pardos eram 47,8% dos graduandos (quase 19 mil), de acordo com o Anuário Estatístico 2020”.
A desconcentração do poder do conhecimento incomoda redutos de poder coronelistas e, em muitos casos se contrapõe às estruturas de poder de elites locais que concentram poder e terra, enquanto a maioria da população vive de forma precária.
A democratização do conhecimento impacta os territórios em que o poder se impõe por meio da perpetuação de práticas autoritárias e anti-democráticas.
3. Gestão democrática: decisões tomadas em conselhos
A forma de gestão democrática das universidades públicas, com o processo decisório distribuído por instâncias coletivas responsáveis pela avaliação, planejamento e deliberação dizem respeito a uma cultura política democrática radical, em que pessoas não se perpetuam no poder, mas se alternam, revezam a responsabilidade da gestão, o que torna o ambiente das universidades mais maleável às alternâncias nos cargos e, portanto, menos engessado e refém de grupos políticos, como ocorre em estruturas privadas e em órgãos públicos de algumas instâncias do poder judiciário e legislativo.
O poder autoritário preconiza o controle absoluto das estruturas de poder do Estado. No caso brasileiro, a atual gestão do governo federal tem feito uso de recursos antigos, como a negociação de cargos, recurso de emendas parlamentares via orçamento secreto, a composição com o “centrão”, e novos artifícios, como o loteamento de diversos setores do governo para oficiais militares da ativa e da reserva, buscando sustentação política por meio da ameaça das armas.
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No caso das universidades, o governo Bolsonaro rompeu a tradição de respeito às consultas à comunidade acadêmica para escolha de reitores, e indicou em mais de 21 universidades nomes não indicados como primeiro lugar na lista tríplice resultante de consulta à comunidade acadêmica, ou seja, não respaldados pela escolha dos três segmentos existentes nas universidades: estudantes, professores e técnicos.
4. O recurso empenhado nas universidades é investimento no futuro do país e não gasto
Chegamos ao bicentenário da independência do país sem termos nos tornado independentes e soberanos. Garantir um sistema universitário público vigoroso é pressuposto para as pretensões de soberania política, científica, econômica e cultural do país.
O fato de sermos um dos quinze países que mantém redes de ensino superior público e estarmos entre os vinte países mundiais com maior quantidade de pesquisas publicadas por ano deveria ser exaltado e defendido, como algo a ser expandido, como pré-condição de desenvolvimento.
Entretanto, nos planos utópicos de instituições da direita brasileira, como o projeto de nação construído pelos Institutos General Villas Bôas e Instituto Sagres, por exemplo, o que se defende é a cobrança de mensalidades em universidades públicas e a privatização do SUS.
Para a direita e para a extrema direita o que foi garantido à toda população em termos de direitos constitucionais é um peso muito grande, um fardo para seus projetos de país.
Para as universidades, o que consta na Constituição de 1988 não é um fardo, não deve ser contestado, nem diminuído, e o Estado não é um obstáculo a ser reduzido à mínima potência.
Em países como o Brasil, situados na periferia do sistema mundial, um Estado forte é uma premissa civilizatória indispensável. A existência de um Estado forte é a garantia das possibilidades de democratização das estruturas econômicas, políticas e culturais de um país.
* Rafael Villas Bôas é professor da Universidade de Brasília e diretor da UnBTV
**Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino