O mundo discute distribuir melhor a renda; o Brasil precisa entrar nesse debate
Por Dante Apolinario, Giovana Silveira, Gabriel Santos Carneiro, Isabela Temístocles Gomes e Leonardo Poletto Di Giovanni
Disparam alertas para a escalada da fome e pobreza em um mundo onde cada vez mais pessoas existem às margens da economia, e de forma concomitante a uma pequena parcela da população que mantém ganhos expressivos, apontando a necessidade de discutir a redução de desigualdades. Como fazê-lo vem se tornando um desafio que passa também por justiça tributária.
Se na década de 1980 era quase pecado propor aumento de impostos e intervenção estatal na economia, porque isso iria frear o crescimento e desestimular a economia, quarenta anos depois, a situação é muito diferente. A desigualdade cresceu no reinado das políticas econômicas neoliberais e explodiu na pandemia. O relatório da Oxfam “Lucrando com a dor” mostra dados alarmantes: neste ano mais de 250 milhões de pessoas correm risco de cair na extrema pobreza.
No entanto, a dor e a pobreza não são para todos. Uma parcela muito pequena ganhou muito: os multibilionários. Em dois anos, surgiram 573 novos bilionários. Outros 2.668 bilionários enriqueceram incríveis 42%, totalizando 12,7 trilhões de dólares. Apenas dez dos homens mais ricos do mundo têm mais do que os 40% mais pobres do mundo, ou seja, mais de 3 bilhões de pessoas.
Consequentemente, aumentam as vozes para taxar a fortuna dessa pequena fração que detém a maior parte da riqueza mundial. Agora, esse movimento ganhou outro impulso além das razões humanitárias. Na Europa e EUA, um novo debate sobre impostos e capacidade de intervenção do Estado contrasta com a visão no período de hegemonia das políticas neoliberais.
Primeiro porque, para aliviar os impactos da pandemia, surgiu a necessidade de aumentar os gastos públicos e a retomada do crescimento exige investimentos públicos. Juntam-se a isso questões estruturais do novo cenário contemporâneo: responder às crises climáticas e à corrida tecnológica com a China. Esses fatores reforçam a noção de que é necessária uma retomada da capacidade do Estado de guiar e intervir na economia e, para isso, é preciso repensar a situação fiscal do setor público.
No mundo todo, crescem as discussões a respeito de medidas para redução das desigualdades, seja no âmbito das organizações nacionais e internacionais ou campanhas da sociedade civil. Entre as medidas de alcance nacional, estão a taxação de grandes fortunas e taxação de windfall profit, que corresponde aos lucros extraordinários gerados pela alta dos preços sem alta dos custos de produção correspondente.
Nas organizações mundiais há um esforço para a criação de taxas mínimas a serem implementadas por todos os países, criando um parâmetro comum. No entanto, esses processos são lentos, principalmente aqueles que ocorrem no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Organizações internacionais como a Oxfam fazem campanha pela adoção de um imposto temporário sobre os lucros extraordinários (windfall profit) das empresas que têm se beneficiado com a alta das commodities, como as alimentícias e petrolíferas. Impostos sobre lucros extraordinários já foram introduzidos, sob pressão política, pelos governos da Itália e do Reino Unido, não obstante o lobby da British Petroleum e Shell contra a medida.
A rede Tax Justice Network (TJN) atua na denúncia e combate da evasão fiscal, corrupção e desigualdades inerentes aos sistemas de grandes corporações multinacionais que se utilizam de sua influência e projeção para explorar as políticas fiscais nos diversos países.
Desde 2009, é publicado o Financial Secrecy Index (FSI) para identificar os mais importantes destinos de lavagem de dinheiro. Esse índice nasceu para se contrapor aos estudos que indicavam os países mais pobres como únicos adeptos dessas práticas, quando. Comprovou-se que, de fato, são os países ricos que recebem enormes montantes oriundos de práticas de evasão fiscal e demais práticas ilícitas, em particular, paraísos fiscais.
Estados nacionais são os maiores prejudicados por perderem parte de sua arrecadação tributária para paraísos fiscais, cerca de US$ 427 bilhões de dólares por ano (cerca de R$ 2, 2 bi), estima a TJN. Ao minar recursos para promover desenvolvimento social e econômico, isso acaba reforçando as desigualdades.
Outra forma de combater as fraudes fiscais que também ganhou destaque mundial com a pandemia é o chamado IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas). Vista como uma boia de salvação contra a custosa pandemia, a arrecadação desse tipo de taxação poderia custear a ''reconstrução'' da economia.
Neste ano, o presidente dos Estado Unidos, Joe Biden, quer estabelecer uma alíquota mínima de 20% sobre rendas superiores a US$ 100 milhões, como parte de seu orçamento em 2023. Segundo a Casa Branca, com esse valor seria possível reduzir o déficit público norte-americano em US$ 1,3 trilhão nos próximos dez anos.
Tendo em vista o nível da globalização produtiva e financeira e o alto grau de interdependência e digitalização da economia global, o combate à evasão fiscal depende, em última instância, de iniciativas fundamentadas na cooperação internacional. É neste contexto que foi assinada pelos membros da OCDE a Declaração sobre uma Solução de Dois Pilares para Enfrentar os Desafios Fiscais Decorrentes da Digitalização da Economia, no fim de 2021.
Como o nome diz, o acordo propõe dois pilares de atuação, o primeiro para multinacionais com faturamento acima de 20 bilhões de euros que possuam lucratividade acima de 10%. Dos lucros que superarem a lucratividade de 10%, 25% deles serão tributados nos países onde a venda final dos produtos foi realizada.
Ou seja, força as multinacionais com alta lucratividade a submeterem parte dos seus lucros excessivos ao sistema tributário dos países onde seus produtos foram vendidos. O segundo pilar, que se tornou mais conhecido, consiste em tributar em 15% os lucros de multinacionais que faturam mais de 750 milhões de euros por ano. A expectativa da OCDE é que esse “imposto global” gere mais de 150 bilhões de dólares em receitas fiscais por ano.
A implementação do acordo vem também enfrentando grandes dificuldades. Originalmente previsto para 2023, novas declarações do Secretário Geral da OECD indicam que sua implementação será adiada para 2024. O que não está paralisado, entretanto, é a subida dos custos de alimentos e energia, devido às pressões inflacionárias.
O Brasil e seu cenário, ainda distante, para uma tributação justa e solidária
O Brasil, apesar de ter voltado a integrar a lista das dez maiores economias do mundo, segundo o ranking da Austin Rating, integra, também, a lista dos dez países mais desiguais. Com uma evasão fiscal equivalente a um valor entre R$460 bilhões e R$600 milhões em 2020 e um Imposto sobre Grandes Fortunas ainda em fase de proposta no Congresso nacional, a situação tributária no Brasil reflete as dinâmicas desiguais de sua organização social.
Estruturalmente, o país possui mecanismos que favorecem o status quo de uma concentração de renda elevada. Apesar do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) ser previsto no artigo 153 da Constituição Federal de 1988, além de já ser uma prática em diversos países como França, Espanha e Argentina, nunca houve a implementação nacional de uma lei para esta questão.
Além do IGF, chama a atenção a ausência de outras medidas tributárias nacionais que poderiam ser aplicadas visando o combate à desigualdade, como a tributação de lucros e dividendos, a simplificação da tributação sobre consumo e uma aplicação mais condizente do imposto sobre a propriedade territorial rural.
No terreno internacional, a possibilidade de implementação do imposto global para empresas multinacionais teria grandes impactos sobre o país - afinal, multinacionais tiveram uma taxa de participação em 24% das exportações brasileiras em 2020
Por isso, torna-se ainda mais fundamental a atuação da sociedade civil internacional por meio de redes internacionais e ONGs. Ou, seja, com a adesão da comunidade internacional a este debate, vemos também no Brasil, pela primeira vez, a oportunidade de debater tabus sobre uma reforma tributária solidária, justa e sustentável e avançar para reduzir os abismos sociais que atualmente definem o país.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho