Movimentos sociais ligados à população em situação de rua de São Paulo relatam indignação com a criação, pela prefeitura de São Paulo, do chamado “Auxílio Reencontro”. Trata-se de uma ajuda financeira para quem se dispuser e demonstrar condições de acolher pessoas em situação de rua na capital paulista. A medida faz parte da Lei nº 17.819 sancionada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) e publicada nesta quinta-feira (30) no Diário Oficial da Cidade. Até o momento, o município não divulgou valores ou detalhes para recebimento do auxílio.
Antes mesmo de ser colocado em prática, entidades como o Movimento Estadual e Nacional da População em Situação de Rua e o Movimento de Luta em Defesa da População de Rua, explicam que a proposta é totalmente “inadequada” do ponto de vista do respeito à autonomia e cidadania das pessoas sem-teto.
Por meio de nota do Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua de São Paulo, elas destacam que o projeto está “longe de enfrentar as múltiplas e complexas causas da situação de rua. O que pode agravar ainda mais a vulnerabilidade do público a que se destina”, alertam.
“O auxílio será pago não á pessoa em situação de rua, para que ela saia das ruas através da construção de autonomia e acesso próprio à renda e moradia, mas a terceiros, familiares ou não, para que recebam pessoas em suas casas, institucionalizando o “está com dó? Leva para sua casa”, avaliam os ativistas sobre o “Auxílio Reencontro”.
Terceirizando a responsabilidade
O governo Nunes alega que o objetivo da iniciativa é reduzir o número de pessoas em situação de rua da cidade. Segundo o censo municipal sobre essa população, divulgado no início do ano, há ao menos 31.884 pessoas vivendo nas ruas da capital paulista. Mas organizações que trabalham diretamente com essa população apontam para uma subnotificação no dado oficial e afirmam serem cerca de 60 mil sem-teto em São Paulo, atualmente.
Sem especificar como, a prefeitura também argumenta que avaliará cuidadosamente o tipo de vínculo existente entre o candidato ou a candidata a receber e quem está em situação de rua. O texto do Executivo, nesse sentido, praticamente não restringe as possibilidades, já que parentes próximos , – como pais, filhos, cônjuges –, além de vizinhos, amigos ou qualquer um que tenha interesse poderá acolher temporariamente uma pessoa em situação de vulnerabilidade.
Na visão dos movimentos sociais, há risco de que, em vez de acolhimento, ocorram abuso, cárcere privado e situações análogas à escravidão, por exemplo. A avaliação é que o governo Nunes cria um “mercado de acolhimento” de difícil fiscalização. “O dispositivo terceiriza a responsabilidade do Estado em oferecer moradia e acolhimento para população em situação de rua”, resume o Fórum da Cidade.
O próprio censo municipal aponta que os conflitos familiares são o principal motivo que leva as pessoas a irem morar na rua (34,7%). As entidades ressaltam ainda que a proposta da prefeitura está longe de interferir de maneira direta no foco do problema, a crise humanitária e a perda de trabalho e renda que tem levado também milhares às ruas.
Aprovação relâmpago
A criação do benefício é descrita no artigo 8º da nova legislação que trata da institucionalização de uma série de programas. Entre eles, o “Vila Reencontro” que, segundo justificativa da prefeitura, é uma espécie de “mini bairro” de moradias sociais para acolhimento transitório de pessoas em situação de rua e promoção de ação intersetorial, como saúde, direitos humanos, assistência social, trabalho e renda. A lei também propõe a criação do Fundo de Abastecimento Alimentar de São Paulo (FAASP).
O objetivo é que os recursos desse fundo financie programas como o Armazém Solidário, que trata da criação de pontos de vendas de produtos com preços subsidiados, por exemplo. A lei sancionada também institui o programa Cidade Solidária, de distribuição de cestas básicas, o Bom Prato Paulistano e a Rede Cozinha Cidadã, iniciada no primeiro ano da pandemia de covid-19 para distribuição de refeições à população de rua.
Mas, apesar de tratar de diversos temas, a proposta tramitou na Câmara de Vereadores de forma relâmpago, em menos de 48 horas, e em “completa falta de diálogo com a sociedade civil e as próprias pessoas em situação de rua”, conforme também denunciam os movimentos. A medida foi protocolada pelo governo Nunes no Legislativo sob a forma do Projeto de Lei (PL) 427/2022 ainda na terça (28). Por conta do recesso parlamentar de julho, houve um acordo no Colégio de Líderes para aprovar o PL com rapidez.
Violações
O texto do Executivo foi então incluído no substitutivo de outro projeto, o PL 528/2021, de autoria do vereador Sansão Pereira (Republicanos) que tratava da instalação de restaurantes populares em São Paulo. Como a proposta de Pereira já havia sido aprovada em primeiro turno, os vereadores votaram, de forma definitiva, nesta quarta (29) o texto com as novas inclusões, sem passar por quaisquer discussões na Câmara. O texto foi aprovado por 37 votos, ante oito contrários e seis abstenções. No mesmo dia, o prefeito assinou o projeto, oficializado nesta quinta.
O Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua diz que a manobra do Executivo e do Legislativo descumpriu o trâmite regimental que obrigaria o projeto a passar por duas votações e audiência pública. Além disso, os movimentos apontam que houve violações às atribuições e competências dos conselhos municipais de Segurança Alimentar e Nutricional (COMUSAN) e Assistência Social (COMAS) e o Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para População em Situação de Rua (Comitê PopRua).
“Mais uma vez, cria-se na urgência uma suposta solução paliativa que longe de enfrentar as múltiplas e complexas causas da situação de rua, pode agravar ainda mais a vulnerabilidade do público a que se destina”, conclui em nota o Fórum da Cidade.
Confira as principais notícias desta quinta (30/06), no áudio acima.
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