O cantor pernambucano Siba exalta o "tesouro não capitalista" da cultura popular brasileira, ao mesmo tempo em que convoca seu público para ação: "a gente tem que ter coragem, perder o medo de recuperar o orgulho, a consciência e a importância da herança socialista".
O Brasil de Fato acompanhou a primeira edição da Feira Nordestina da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Fenafes), em Natal (RN), em junho, e conversou com o artista após sua apresentação no evento. "Esses momentos em que eu tenho o privilégio e a oportunidade de cantar para as pessoas que estão, de fato, imbuídas nesse movimento de luta, são os mais significativos para mim."
Siba versou sobre a conjuntura do Brasil e da América Latina, e tratou das conexões entre arte e política. "Acho que a gente não faz nada – especialmente um artista, mesmo que ele queira, imagine, ache que esteja – desconectado do momento e do que está ao redor dele e de uma concepção que se não for na intenção, na consequência é sempre política."
"A gente precisa abandonar um pouco essa ideia de que vai dar tudo certo, porque eu acho que esse país pode dar bem errado e tem dado errado. E talvez a gente precisa abandonar também essa ideia de que existe uma possibilidade de capitalismo bom para a América Latina e para o terceiro mundo", afirmou.
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato: Siba estamos aqui na Feira Nordestina da Agricultura Familiar e Economia Solidária, que é fruto da luta de famílias que historicamente se organizam contra diversas formas de opressão e injustiça. Além disso, nesse momento, cobram direitos diante de tantos desmontes de políticas públicas. Como podemos relacionar as suas músicas com a luta pelo reconhecimento e valorização da agricultura familiar?
Siba: Eu sou um artista que tudo o que eu fiz na minha trajetória, que já não é tão curta assim, tem a ver como fato de existir no Brasil uma coisa que a gente chama de cultura popular, que não passa desse espaço, desse campo de atividade cultural dos condenados da terra, dos excluídos.
Então, necessariamente, eu faço parte disso tudo que você falou aí. Se tirar o maracatu e a cultura popular de Siba fica somente aquele “i”, que é um risquinho que cai para qualquer lado e não tem nem como escorar. Então, fatalmente, eu faço parte de tudo isso.
E nesses momentos em que eu tenho o privilégio e a oportunidade de cantar para as pessoas que estão, de fato, imbuídas nesse movimento de luta, são os mais significativos para mim. É claro que eu vivo do que o canto, do que eu escrevo, do que eu crio e eu não escolho onde eu canto. Mas são nesses momentos onde eu me realizo do jeito mais pleno possível.
Eu faço parte de tudo isso.
Inclusive, Siba, não apenas aqui em Natal, mas nas apresentações mais recentes, vemos manifestações políticas suas com uma nitidez de representação. Aqui em Natal, por exemplo, você defendeu o projeto socialista para a América Latina e apresentou a bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no palco, entre diversas posições que também escutamos nas letras das músicas.
Eu acho que a gente tem colhido frutos amargos de uma certa postura passiva, de talvez acreditar num certo sentido natural de que as coisas evoluem para melhor, e que a gente vai ter um futuro melhor sempre. Para mim, todo esse processo de 2014 para cá, está se comprovando que o bem não é necessariamente assim [de um sentido natural].
O bem comum é necessariamente, logicamente, a consequência dos movimentos de força da política e do mundo concreto. Então eu acho que a gente precisa abandonar um pouco essa ideia de que vai dar tudo certo, porque eu acho que esse país pode dar bem errado e tem dado errado. E talvez a gente precisa abandonar também essa ideia de que existe uma possibilidade de capitalismo bom para a América Latina e para o terceiro mundo.
Então, como consequência disso, a gente tem que ter coragem, perder o medo de recuperar o orgulho, a consciência e a importância da herança socialista, tenho falado isso sempre nos shows. Parece uma coisa meio lógica, meio básica, mas muita gente tá esquecido disso.
A gente precisa abandonar também essa ideia de que existe uma possibilidade de capitalismo bom para a América Latina e para o terceiro mundo.
As pessoas têm medo de falar que boa parte do que a gente considera hoje como direitos do capitalismo social-democrata são consequências da pressão, da herança da esquerda radical. Para isso ,a gente tem que parar de ter vergonha de recuperar o nosso legado da extrema esquerda socialista e o debate comunista, que é muito importante e tem 200 anos de um debate super-rico e que informou e formou todas as experiências socialistas concretas, que parte deram errado, mas que também trouxeram grandes conquistas.
A gente tem que parar de ter vergonha delas [das conquistas] e exibi-las com orgulho, temos que tê-las no nosso horizonte, porque se não, a gente vai voltar para um lugar que a gente já teve, que a gente já viu que não dá mais certo.
E pegando carona nessa perspectiva de uma história que não segue uma linearidade de evolução, podemos lembrar conquistas e desafios para um projeto socialista para América Latina nesse sentido contra a colonialidade e o imperialismo que estão presentes hoje, mas têm a ver também com uma concepção de história viva. Daí eu gostaria de perguntar justamente sobre isso, da importância de reconhecermos que temos uma posição agora, mas ela mexe com o passado e abre novas lutas e sonhos para o futuro, né?!
Eu não vou aqui me arriscar a dar cartilha, roteiro, modelo para ninguém. Só acho que a gente não faz nada – especialmente um artista, mesmo que ele queira, imagine, ache que esteja – desconectado do momento e do que está ao redor dele e de uma concepção que se não for na intenção, na consequência é sempre política.
Eu acho que é obrigação do artista hoje estar consciente do momento em que ele vive e procurar processar isso primeiramente no nível pessoal. E tentar entender como é que o trabalho dele reflete e dialoga com o momento político e de que forma ele coloca o trabalho dele em diálogo com as políticas que sempre estarão lá.
O que chamamos de cultura popular só existe porque há excluídos neste país.
Dentro dessa perspectiva, eu entendi desde 2014 que não tenho muito como fazer de conta que não está acontecendo o que está acontecendo nesse país. E que é preciso se colocar, até porque eu não tenho ilusão de que qualquer coisa que eu escrever ou que eu disser no palco vai mudar nada. Mas às vezes eu penso assim, o tempo passa muito rápido e daqui a pouco eu estou a sete palmos de terra e as pessoas vão contar a história desse momento tão triste do país. E vai ter aí dois, três, 10, 20 ou 30 artistas que estavam falando disso. Eu quero ser um deles.
Porque é como eu falei antes, o meu trabalho pequeno ou médio, ele não existiria sem a cultura popular. E então eu tenho a obrigação de ser responsável com isso que é maior que eu, uma coisa da qual eu faço parte e que forma o meu trabalho. O meu trabalho não existiria sem a cultura popular. E o que chamamos de cultura popular só existe porque há excluídos neste país. Então eu não posso fazer de conta que eu não faço parte disso e por isso eu acho que não posso escapar de tomar posição.
E por falar em não escapar de tomar uma posição, percebemos seus discos mais recentes com mensagens muito diretas sobre a situação que o país passa, de formas de opressão e exclusão que se intensificaram nos últimos anos. Ao mesmo tempo, o disco Baile Solto (de 2015) e Coruja Muda (de 2019) são bem distintos. O que se falar sobre esses álbuns mais recentes?
O Baile Solto fala de uma de uma conjuntura que era justamente a ascensão da direita no país. Ele tenta ler isso. Não sei se com grande esclarecimento, mas com sentimento muito honesto, eu acho. E que dá um testemunho a favor, talvez um pouco dessa concepção mais progressista, de uma esquerda que talvez acredite que a simples afirmação de um mundo melhor justifique. Eu não sei se eu concordo totalmente com tudo que está colocado ali naquele momento, mas é muito sincero. Eu acho que de um modo geral é um disco que é muito coerente com o que procura dizer.
Em seguida veio Coruja Muda que eu acho que é um disco mais aberto, que faz uma leitura política menos assertiva no sentido de que a gente não sabe e não tem condições de entender todos os movimentos que estão em jogo. Mas a gente coloca claramente que é necessário sonhar e acreditar que outro mundo é possível. E para isso a gente tem que ter coragem até de apontar o dedo para as forças reacionárias também. Então é isso, a cada momento, tento refletir no meu limite o que eu estou vendo ao meu redor.
Siba, aqui na conversa você já abordou mais de uma vez sobre a cultura popular, até mesmo numa condição de certa reverência. E aí eu gostaria de perguntar um pouco mais sobre tuas experiências com a cultura popular. Como foram esses aprendizados? E como essa cultura popular pode fazer, digamos, conversações no teu trabalho?
Quando eu falo que o meu trabalho vem da cultura popular, quer dizer que tem elementos, a poética, uma certa lógica da relação da poesia com a rítmica, o ritmo e coisas que você reconhece dessas práticas populares. Mas tudo isso é uma coisa muito pequena. É o trabalho de um artista, um simples artista, que é profissional e que tem esse é dentro dessa outra coisa maior.
Essas práticas não capitalistas podem ser inspiração para práticas conscientemente anticapitalistas.
Mas quando estamos no palco é uma coisa muito pequena perto disso que é uma coisa é incomparável, um complexo de práticas, de atividades que estão inseridas dentro de uma concepção não capitalista do mundo, de pessoas que estiveram em boa parte dos 500 anos de história desse país à margem dos processos de avanço de cidadania, de acesso a direitos, conforto e tal. E o que fez realmente e importa ao caso é isso. São atividades deste mundo que até hoje guardam essa lógica que não é capitalista e que traz para nós uma referência muito importante e uma possibilidade de um país, de um mundo melhor, não regido pela mercadoria, não regido pela transformação de tudo, das coisas e das pessoas, dos pensamentos em mercadoria.
Eu acho que essa é a grande lição e a grande importância e força da cultura popular. Então é necessário nunca dizer ou achar que um artista como eu representa isso. Um artista como eu reflete, de modo muito pequeno, essa coisa que é maior e que na verdade é o grande tesouro que esse país. A esperança desse país.
Essas práticas não capitalistas podem ser inspiração para práticas conscientemente anticapitalistas. E que se possa fazer nesse país aqui algo mais contundente, mais afirmativo, mais forte a partir dessas atividades também, mas com um horizonte político de luta e de uma atividade com muita clareza. Porque eu acho que já também passou o tempo dessa esperança subjetiva, não concreta. A gente tem que olhar para uma luta que precisa trazer resultados concretos mesmo.
Edição: Rodrigo Chagas