Julho é marcado por datas que rememoram os processos de luta e resistência da população negra. Há 71 anos, em 3 de julho de 1951, foi promulgada no Brasil a primeira norma destinada a punir e inibir atos racistas, a Lei 1390/1951, mais conhecida como Lei Afonso Arinos.
Embora a Lei não trate o racismo como crime, mas sim como contravenção penal, considerado ato infracional de menor gravidade, é considerada por historiadores, um divisor de águas na luta racial, pois foi a primeira vez que o Estado brasileiro admitiu, mesmo que implicitamente, que o Brasil é um país racista.
Uma das expressões do racismo na população negra brasileira é na saúde mental e para falar sobre esses efeitos, o Brasil de Fato DF entrevistou psicólogos e psicanalistas, que possuem formação em diversas áreas do campo da saúde e promovem estudos com recorte em raça e também gênero.
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Segundo o psicanalista Francklin Lino, o racismo opera na cultura da sociedade, transmitido de uma geração a outra como uma espécie de matriz de modelos que diz e determina o que é desejável e o indesejável.
“A subjetividade de um ser humano é formada a partir dos costumes. E este sujeito tem o anseio básico de ser desejado, reconhecido e amado. O racismo nega este anseio humano e é uma fonte a mais de sofrimento".
Para a especialista em Saúde Mental, Nádia Meireles, o racismo não é só uma questão de subjetividade. “É também um fenômeno que interfere no mercado de trabalho, no acesso à educação, na qualidade de vida, nas oportunidades, na possibilidade de ascensão social e reconhecimento causando danos significativos".
Efeitos do racismo
A pesquisa sobre o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência 2017, da Unesco em parceria com a Secretaria Nacional de Juventude da Presidência da República e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que o risco de um jovem negro ser assassinado no Distrito Federal é três vezes maior que o de um jovem branco.
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Ao avaliar os dados, é possível perceber que a violência na capital do país é seletiva: concentra-se nos mais novos, negros e moradores de áreas periféricas. O caso do adolescente, Gustavo Henrique Soares Gomes, morto por disparo de arma de fogo de um policial militar enquanto estava na garupa de uma moto, em Samambaia (DF), exemplifica.
Profissionais de saúde afirmaram que o racismo produz efeitos diversos.
Luciano de Sá, psicólogo clínico, detalha que mentalmente os efeitos da exposição ao racismo podem levar à depressão em seus diversos níveis. "Podem conduzir ao aumento do estado de ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático em casos que envolvem agressão física ou policial. Efeitos no sono, sensações como medo e vergonha que podem levar a diminuição da motivação para contatos sociais e aumento de comportamentos de risco", diz.
De acordo com o psicólogo especialista em políticas públicas de gênero e raça, Vinicius Dias, do período pós-abolição até hoje, por conta do racismo, a maioria dos negros brasileiros permanecem em condição de uberização trabalhista ou desemprego e educação formal inacabada.
“São os que possuem maior índice de suicídio e aprisionamento, estão em lugares comprometidos pela ausência de saneamento básico, possuem maior taxa de desnutrição, entre outros”, destaca.
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Foi unanimidade entre os profissionais entrevistados a afirmação de que a condição social da população negra brasileira é causada pelo racismo, que é responsável direto pelo afetamento da saúde mental dessa parcela da população em todas as faixas etárias.
Em 2018, o Ministério da Saúde e a Universidade de Brasília lançaram o estudo Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros, que apontou que entre 2012 a 2016, o risco de suicídio entre adolescentes de 10 anos até jovens adultos de 29 anos é 45% maior entre a juventude negra em relação a branca.
“Se fizermos o recorte de classe, podemos começar a questionar onde moram esses jovens que se suicidam. Eles moram no centro ou na periferia?", questiona o psicanalista Francklin Lino.
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Os dados do Ministério da Saúde apontam ainda sobre a taxa de mortalidade por suicídio em jovens. A cada 10 autocídios em adolescentes, 6 ocorreram entre jovens negros. No Distrito Federal, o índice é de 6,3 óbitos/100 mil. Roraima possui o maior número, sendo 30/100mil.
"O racismo retira a humanidade das pessoas negras. Essas relações de desigualdades fazem com que questionem seus lugares no mundo e também seus direitos interiorizando que merecem lugares de menos valia", aponta a psicóloga Amanda de Moraes.
A psicóloga Joyce Avelar complementa que "o racismo é um fenômeno social violento de extremo sofrimento psíquico".
Políticas públicas de saúde mental
Luciano de Sá, psicólogo clínico, pontua que quando se trata de políticas de saúde que deveriam beneficiar a população negra, o que pode ser observado é a não execução, por exemplo, de diretrizes previstas no Programa Nacional de Saúde integral da população negra.
"O grupo de trabalho racismo e saúde mental do Ministério da Saúde, entre 2014 e 2016, observou assimetrias racistas no campo da saúde mental quanto a problemas nas formações dos profissionais, dificuldade da Rede de atenção Psicossocial (RAPS) em acolher o sofrimento psíquico como efeito do racismo, escassez nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de linhas de cuidado que se dediquem aos sofrimentos causados por discriminações interseccionais que envolvem raça, gênero e classe", explicou.
A Conferência Mundial sobre determinantes sociais da saúde realizada em 2011, reconhece o racismo como determinante social de saúde. Já a Portaria 344 de 2017 do Ministério da Saúde também admite ao dispor sobre o preenchimento do quesito raça nos formulários dos sistemas de informação em saúde.
Segundo os entrevistados, os programas de enfrentamento ao racismo foram esvaziados entre os anos de 2016 e 2020.
"Observamos um verdadeiro retrocesso em conquistas históricas da população negra. Atualmente há um sucateamento das políticas e serviços em saúde mental, uma volta a uma lógica manicomial, verbas públicas que deveriam ser investidas na RAPS são destinadas a comunidades terapêuticas, que não mantém compromisso ético, técnico e científico com a saúde mental, uma vez que quase sempre são alinhadas a dogmas e instituições religiosas", conclui Luciano.
Questionado sobre os programas de saúde mental para a população negra, o Ministério da Saúde respondeu em nota ao Brasil de Fato que ”fornece atendimento integral e gratuito a todas as pessoas com transtornos mentais ou em decorrência de álcool e outras drogas, sem nenhuma distinção''.
O Ministério reforçou que “toda sua estrutura de atendimento está em consonância com as demais políticas públicas e reitera a importância da promoção à saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS)".
Sofrimento psíquico é deslegitimado
Os profissionais de saúde mental procurados pela equipe Brasil de Fato DF afirmaram acreditar que a população brasileira reconhece a psicologia como um serviço essencial de saúde. Porém, o psicanalista Francklin Lino ressalta que para buscar o atendimento psicológico é necessário que a pessoa reconheça a necessidade do tratamento.
"A deslegitimação do sofrimento psíquico é muito presente na sociedade brasileira. E também, historicamente, as pessoas que possuíam este tipo de enfermidade eram tratadas com violações de direitos. Eram expostos a um tratamento de confinamento e exclusão. A pessoa se identificar como alguém que possui um sofrimento psicológico é ameaçador para ela até hoje", diz Francklin.
Psicologia preta
A própria ideia de pensar que a população negra não costuma ter acesso a acompanhamento psicológico, incentiva este grupo de profissionais especialistas em saúde mental procurados pela reportagem e a outros coletivos de psicólogos e psicanalistas espalhados pelo Brasil a focarem seus estudos e trabalhos na população negra.
"Pensar uma psicologia que reflita nossos próprios interesses, histerografia e humanidade é algo da nossa geração. Nossos sofrimentos e traumas ainda estão sendo nomeados. Só a partir de uma psicologia que leve em consideração nossa história positiva anterior a escravidão, e que entenda os traumas coletivos que carregamos a partir desse marco, será propositiva para o cuidado integral de nosso povo. Nós ainda vivemos um genocídio negro em curso e grande responsabilidade dos psicólogos negros é fazerem sua prática profissional numa perspectiva que promova nossa retomada coletiva de autonomia e prosperidade", pontua Ariane Kwanzatena, psicóloga, mestra em Educação e psicologia preta.
Segundo Ariane, a psicologia “não foi pensada por e nem para pessoas descendentes de africanos. O projeto desse país era, e é, de extingui-los”.
Para o psicoterapeuta, Antônio Isaquiel de Souza, a população negra sofre negligência na área da saúde de forma geral e em específico a mental. “A ausência desse cuidado confirma o projeto de extermínio da população negra e se estabelece de forma sutil", relata.
É necessário pensar a racialidade em todas as áreas, aponta a psicóloga Joyce Avelar. “Pautar racialidade é uma resposta diante do silêncio que temos sobre as nossas questões. Inclusive temos um arcabouço de estudos sobre raça, mas também são invisibilizados".
Para Vinícius Dias é importante o recorte racial tendo vista que a maioria da população brasileira é formada por pessoas negras. “Mas mesmo assim, os espaços de poder na sociedade brasileira são ocupados por pessoas brancas, como as assembleias legislativas, o Congresso Nacional, o corpo docente das universidades. Estamos expostos a toda adversidade, como ter saúde mental?".
Saúde mental no DF
Segundo informações da Secretaria de Saúde, o Distrito Federal possui 18 unidades especializadas em atendimento psicossocial que promovem o acompanhamento com equipes multidisciplinares, oficinas terapêuticas e ações de reabilitação psicossocial.
Em junho, a Secretaria disponibilizou um relatório com dados de atendimentos em saúde mental no Distrito Federal, no entanto, embora o documento apresente informações quantitativas sobre procedimentos por região, sexo e faixa etária não são apresentadas informações sobre raça. Questionada sobre a ausência da informação no quesito racial no relatório, a Secretaria informou que "os CAPS coletam essa informação ao fazer o acolhimento dos pacientes, por meio de autodeclaração do paciente/usuário".
De acordo com a nota da SES-DF, a informação é coletada por meio de dois instrumentos. "Tanto no formulário de acolhimento, quanto no RAAS - Registro das Ações Ambulatoriais de Saúde, que é o instrumento de Registro da produtividade dos CAPS junto ao Ministério da Saúde. Porém, como os CAPS ainda não são informatizados, não temos como consolidar isso no momento".
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino