Na comunidade de Ilha de Mercês, em Ipojuca (PE), são as mulheres quilombolas que constroem a agroecologia.
“Cada vez mais eu vou criando mais amor. Amor de plantar, ver aquela plantinha crescer, que foi tudo fruto do seu trabalho”, pontua a agricultora Rosilda Fátima de Abreu Silva.
O acesso a alimentos saudáveis e sem agrotóxicos, antes um grande desafio, se tornou realidade para as 268 famílias da comunidade tradicional.
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A transformação veio por meio da horta comunitária, fruto do projeto Mulheres e Frutos da Terra: Construindo Agroecologia e a Segurança Alimentar e Nutricional, uma parceria entre o Fórum Suape Espaço Socioambiental e o Centro Sabiá de Agroecologia.
O objetivo da iniciativa, que surgiu na pandemia, é resgatar os saberes tradicionais que permitiam a soberania alimentar de comunidades inteiras, hoje impactadas pelo Complexo Industrial de Suape, no litoral sul de Pernambuco.
“Depois do projeto não tem mais agrotóxico, nas verduras, nos alimentos. Traz saúde para nossas vidas, né? Nossas crianças”, explica a quilombola Maria Auxiliadora da Silva.
Tudo começou na limpeza do terreno, escolhido a dedo pelo coletivo de 12 mulheres. Antes da iniciativa, o grupo não conhecia técnicas para auxiliar o cultivo, o que acabava desmotivando a agricultura entre elas.
Tomate e pimentão já eram plantados, mas a alface, por exemplo, só foi incorporada depois dos ensinamentos.
“Pra mim eu achava que isso era simplesmente achar um terreno e fazer um buraquinho e plantar a semente e ponto. Mas não é assim, a gente tem que ter o manejo da terra, tem que preparar, tem que ter o cuidado de irrigação”, explica Rosilda
“Isso aqui é tudo mulheres, mulheres guerreiras, uma vai ajudando a outra, e a gente vai chegando a nossa finalidade”, completa a camponesa.
Suape e os Impactos ambientais
Titulado em 2017 pelo Incra, o território quilombola é cercado pelo complexo industrial de Suape.
O rio Tatuoca, que margeia a comunidade, historicamente gera renda às famílias por meio da pesca artesanal.
Mas um barramento construído por Suape cortou a ligação entre o Rio e o mar, matando árvores e inúmeras espécies de peixes, moluscos e crustáceos. A água passou a ter fundo escuro, com óleo na superfície.
A obstrução que era para ser provisória dura até hoje, mais de 14 anos depois da obra, e continua a ameaçar o modo de vida tradicional. Por conta disso, as famílias reclamam que têm dificuldades para vender o pescado e lutam para manter o manguezal vivo. Durante a pandemia, a situação só piorou.
Nascida e criada no quilombo, Denise da Silva tem 10 irmãos. O pai cultivava mandioca. E também tinha renda com a pesca. Todos ajudavam.
“O meu pai colocava a rede de camarão, a gente ia pra escola, eu e meu irmão, aí ele dizia, chega da escola, coma e venha me ajudar. Nunca dormia com fome, mas a gente trabalhava muito para poder comer”, relembra.
Engenho Ilha
A 25 km de Merces, outra horta comunitária liderada por mulheres está a todo vapor. É na comunidade do Engenho Ilha, no município de Cabo de Santo Agostinho
Quando o projeto chegou, foi Veralúcia Domingos que expôs ao Centro Sabiá e ao Fórum Suape, o que faltava para melhorar a infraestrutura e possibilitar o cultivo.
“Nós precisávamos de apoio, de ferramentas, de condições de estruturar a horta, de sombreiros, irrigação, porque aqui a gente tem problema com água. Nós não temos água encanada, o poço artesiano para cavar era caro, então a gente precisou de tudo isso e foi o que o projeto nos ofereceu”, conta a Presidenta da Associação dos Agricultores de Ponte dos Carvalhos (PE)
Encontros e mutirões
A horta comunitária, que começou com 12 mulheres, estimulou o cultivo de hortaliças, antes algo ainda pouco comum entre elas. Outro aprendizado foi o uso da sementeira. Gracielle Martins da Silva antes jogava as sementes direto na terra para germinar.
“Eu amo agricultura, nasci na terra. Entende? E até agora, eu não largo a agricultura por nada não. Plantão dá, a gente coloca a semente na terra e dá muito fruto. Isso me encanta”, argumenta.
As agricultoras se organizam em mutirões e encontros semanais na sede da associação. Também se revezam em uma escala diária para cuidar da horta. No final das colheitas, tudo é dividido. E o excedente, é doado para outras famílias do Engenho Ilha.
“Tudo que eu planto ali da terra é para consumo e para doar”, destaca Maria Gomes da Silva.
Terra em disputa
Localizado atrás da Reserva do Paiva, um condomínio de luxo à beira mar, o Engenho Ilha é uma terra disputada.
A origem da área vem da resistência de 24 famílias que trabalhavam na usina Bom Jesus e foram demitidas, sem indenização. Elas permaneceram no território, ainda tomado por plantações de cana.
Hoje, são 305 famílias, entre agricultores, pescadores e extrativistas. Muitas estão ali há quatro gerações. Uma das lutas centrais é pela preservação do João Grande, uma densa área de mata atlântica e mangue fechado.
“Esse projeto veio trazer, resgatar, significar essa questão com a nossa ancestralidade. Eu estou sempre a fim de falar pra elas ‘oh é importante a gente trazer o que nossos avós faziam'. A forma de fazer o óleo do coco para utilizar tanto no dia a dia como para uso medicinal, os banhos de assento para problemas de pele que possa vir ter, como é que utiliza as ervas. Então tudo isso foi resgatado”, esclarece Veralúcia.
Maria Gomes da Silva explica na prática os conhecimentos ancestrais ensinados.
“Isso aqui é espinha de cigano. Isso aqui é para tosse, para inflamação. Até para coqueluche isso aqui serve. É uma erva. Faz mal não”, conta.
O rastro do desenvolvimento
Em 2008, o Complexo de Suape gerou 46,7 mil novos empregos em Pernambuco, tendo papel determinante no aumento do PIB estadual em 3,4%.
Na época, Suape foi alçada como um dos pilares do desenvolvimento econômico do país.
Mas todo o investimento também gerou impactos socioambientais. Quando o Complexo foi instalado, nos anos 1970, não houve levantamento sobre as populações que viviam dentro do perímetro industrial.
A região tem 13,5 mil hectares e 147 empresas instaladas, e mais de 59% de toda a extensão do perímetro de Suape, são áreas de Mata Atlântica, restinga e manguezal.
A sobrevivência e a reprodução cultural destas comunidades tradicionais dependem da preservação deste território.
Edição: Rodrigo Durão Coelho