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China: maior aliado da América Latina?

Tings Chak fala sobre a cooperação entre o Sul Global no Caminhos para o Mundo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Tings Chak é artista plástica e natural de Hong Kong - BreakThrough News

Depois do final da Guerra Fria, o mundo parece caminhar novamente para uma polarização entre dois grandes blocos: por um lado as potências ocidentais, com os Estados Unidos e a União Europeia; de outro, um bloco euroasiático liderado pela Rússia e China, que caminha para tornar-se o novo centro dinâmico do sistema econômico mundial. 

Com um produto interno bruto de quase US$ 15 trilhões, os chineses já representam 18% do PIB global, e o país deve tornar-se a maior economia do mundo em 2025.

Com a proposta de multipolaridade e desenvolvimento autônomo das nações, o presidente da China, Xi Jinping, acaba de aprovar um novo fundo no valor de US$ 3 bilhões para incentivar a cooperação Sul-Sul.


Para analisar o papel da China nessa nova configuração global, o Caminhos para o Mundo desta terça (12) entrevista Tings Chak. 

Artista plástica, natural de Hong Kong, Tings é pesquisadora e coordenadora do departamento de arte do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e da Assembleia Internacional dos Povos. Foi também uma das fundadoras da Dongsheng News - o portal notícias da China. 

Confira a conversa na íntegra: 

Brasil de Fato: Em junho, foi realizada a 14ª Cúpula dos Brics, grupo formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Em 2015, a economia combinada do bloco já representava 1/4 do PIB global. Um dos últimos acordos debatidos no último encontro sediado em Pequim foi ampliar o grupo, há interesse de ingresso da Argentina, México e Irã. Dessa forma, os Brics poderiam tornar-se a maior aliança internacional, tanto em volume de comércio, como em território. Onde o grupo vai parar? Podemos considerá-lo um bloco anti-hegemônico?

Tings Chak: Acho que é a pergunta principal. Os Brics, que acabaram de fazer a cúpula que a China sediou, têm um papel fundamental nessa conjuntura. Primeiro, os Brics têm juntos 26% do PIB mundial, mas também 42% da população global. E agora há pouco, o Irã e a Argentina acabaram de se candidatar oficialmente para fazer parte dos Brics. Então, eu acho que a questão tem dois aspectos fundamentais. Primeiro, é a questão política. A gente não pode subestimar a importância desses blocos regionais e da integração regional com os projetos anti-hegemônicos, que os Brics fazem parte, mas também tem Celac, na América Latina, a Nova Rota da Seda, a Organização para Cooperação de Xangai, que une os países no oeste da Ásia, tem a Asean, no sudeste da Ásia, tem o Focac, que é a cooperação entre África e China.

Então a gente vê que a América Latina é essencial nesse momento, mais ainda com essa onda nova de governos progressistas, e a gente tá acompanhando bem de perto a eleição do Brasil em outubro. E a segunda questão sobre os Brics é econômica, que é o acesso à reserva de US$ 100 bilhões do Novo Banco de Desenvolvimento como uma alternativa ao Banco Mundial e ao FMI. Além disso, esse banco vai investir mais ou menos US$ 30 bilhões, que é quase R$ 150 bilhões, para esses países que são membros dos Brics. E principalmente, combater essa crise climática, mas com vários assuntos que os povos do sul global enfrentam hoje. Infraestrutura, pobreza, fome, desemprego, inclusive acesso às vacinas. Então, a gente vai acompanhar mais esse momento muito importante na conjuntura mundial. 

China, Rússia, Venezuela e Cuba propuseram a criação de um "grupo de amigos" pela defesa da Carta das Nações Unidas, afirmando que o organismo já não cumpriria com o objetivo pelo qual foi criado. Com a China tornando-se a maior potência econômica mundial, é possível pensar numa reforma da ONU?

Eu acho que foi ano passado que a China, junto com a Rússia e a Venezuela, articularam essa formação de um bloco para defender a carta de fundação da ONU contra o unilateralismo estadunidense e suas sanções e intervenções arbitrárias. E esse grupo de amigos, como a gente chama, conta também com Cuba, Bolívia, Angola, Irã, e mais dez países.

No fim das contas, acho que 30% dos países no mundo sofrem de alguma sanção dos Estados Unidos, então, ser parte desse grupo de amigos significa sofrer alguma sanção unilateral dos Estados Unidos. Eu acho que não se trata necessariamente de reformar a ONU em si, mas para defender os princípios básicos como o multilateralismo, o de não interferência em assuntos internos de soberania nacional, e a busca por soluções de conflitos de jeitos pacíficos. E eu acho que esse resgate é muito importante para todos os nossos povos dos países nesse momento.  

A iniciativa Cinturão e a Rota, também conhecida como a Nova Rota da Seda, é o maior projeto de infraestrutura e comércio proposto nas últimas décadas. Como essa nova rota comercial poderia reconfigurar as relações entre norte e sul global?

Bom, essa é uma grande questão, todo mundo quer entender melhor, porque desde que a Nova Rota da Seda foi estabelecida em 2013, ela cresceu num ritmo impressionante. Da última vez que pesquisei, 193 países já estavam participando, a maioria claro, no sul global. Agora são mais ou menos 21 países da América Latina e do Caribe, e por exemplo, no ano passado, Cuba se juntou com a aliança energética da Nova Rota da Seda, onde também a Venezuela, Bolívia e Suriname já estavam.

Sabendo que a questão energética, sobretudo da energia renovável, é um tema essencial, o setor energético recebe mais ou menos 40% dos investimentos dentro da Nova Rota da Seda, então, cumpre um papel muito importante. E tem uma expectativa que os gastos totais em todos os projetos mundialmente pode chegar até US$ 1,3 trilhões até 2027, e no mundo inteiro, tem milhares de projetos avaliados em até US$ 4 trilhões.

Só pra dizer que é um projeto enorme, tem um impacto no desenvolvimento de infraestrutura, de energia, em vários setores dentro dos nossos países. Mas eu acho importante também ver como os Estados Unidos estão respondendo, enfrentando isso. Parece que, a cada ano, tem uma nova sigla, uma nova tentativa de conter a Nova Rota da Seda. No ano passado era, em inglês, Build Back Better World, ou Reconstruir um Mundo Melhor, mas ainda não conta com nenhum orçamento. E agora há pouco, os países do G7 anunciaram o PGII, um tipo de parceria para infraestrutura global. Mas vamos ver o que vai acontecer porque, até agora, para os países da África, da América Latina, mesmo da Ásia, nem os Estados Unidos ou seus aliados conseguiram oferecer algo que seja útil, que realmente ajude o desenvolvimento dos países.

Eu acho que, por exemplo, a África, que é um dos maiores parceiros da Nova Rota da Seda, o continente em si tem déficit de infraestrutura de US$ 100 bilhões por ano. Isso é enorme, como você vai chegar até esse dinheiro para desenvolver o continente? 40% da população africana não tem acesso à luz. Então, de alguma forma, a China, com essa Nova Rota da Seda, está oferecendo uma opção, pelo menos uma possibilidade para construir pontes, portos, hospitais, acesso à internet. Mas só pra resumir essa parte sobre a Nova Rota da Seda, tem um funcionário do Quênia que disse: “Toda vez que a China nos visita, recebemos um hospital. Toda vez que a Inglaterra nos visita, recebemos uma palestra”. Então é exatamente o que os Estados Unidos e seus aliados não conseguem oferecer para o sul global, nem no ponto de vista da técnica, para construir mesmo, mas também os recursos.  

Seguindo nessa linha da questão econômica, a partir da crise econômica mundial de 2008, a China desbancou a Europa e os Estados Unidos, e passou a ser o principal parceiro comercial da América Latina. Você já comentou um pouco na resposta anterior, mas você poderia nos falar um pouco mais sobre quais são as principais diferenças entre a cooperação econômica com as potências ocidentais e com o governo chinês? 

Eu acho que a questão da relação entre China, América Latina e Caribe tem também as suas próprias contradições. O comércio entre China e América Latina vem aumentando rapidamente, mas ainda está em torno das mercadorias e matérias primas. Então, por exemplo, no ano passado, 34% das exportações extrativistas do continente e 20% das exportações agrícolas foram para a China. E por isso, eu acho que a América Latina precisa de mais transferência de tecnologia, investimentos em infraestrutura e também desenvolver as forças produtivas.

Em alguns lugares isso está acontecendo mais do que em outros, eu vou dar um exemplo. Na Argentina, tem grandes projetos de ferrovias, energia nuclear que inclusive utilizam tecnologia chinesa, e também tem o maior parque solar da América Latina. Mas no Brasil, por exemplo, a experiência é um pouco diferente. O Brasil desfruta de um grande superávit com a China, mas 89% das exportações para a China são soja, ferro, petróleo, carne, e como eu já comentei na questão anterior, sobre a Nova Rota da Seda, pode ser uma possibilidade para mais investimentos em infraestrutura física, digital e também nas telecomunicações.

Mas acho que tem também um limite para pensar no que a China pode e vai fazer para os nossos países no sul global e na América Latina. Eu quero apontar uma publicação, um dossiê, que o escritório do Tricontinental acabou de lançar, o título é “Olhando em direção à China, a multipolaridade como oportunidade para os povos da América Latina”. Então, esse texto fala sobre a questão de que a China não vai resolver os problemas de cada país, isso não faz parte da política da China.

Para os países do sul global gerarem um desenvolvimento soberano que também priorize as necessidades do povo, depende de dois fatores. Primeiro é a capacidade de propor um projeto nacional. É isso que a gente está vendo com essa onda de governos progressistas, mas também a capacidade dos movimentos e organizações populares, também faz parte dessa proposta de um projeto nacional. A segunda coisa é retomar um processo de integração regional, que pode também ajudar, priorizar a cooperação entre esses países, e eu acho que é mais ou menos isso, todo mundo está olhando o que vai acontecer na América Latina e o que isso vai significar para a relação com a China. 

Nos últimos 40 anos, a economia chinesa cresceu de maneira constante.  Quais seriam os segredos do êxito da administração do Partido Comunista Chinês e como você classificaria o sistema político vigente na China?

Eu acho essa questão fundamental, muita gente da esquerda no mundo inteiro ficou muito curiosa depois dos anos 80. A China se voltou para o socialismo, a China ainda está socialista, está no caminho de construir o comunismo. Tem capitalistas na China sim, tem bastante, mas a China é capitalista? A resposta é não. Porque a China ainda é um país socialista, em processo de construção e essa transformação socialista.

Lembra que nem o Marx nem o Lênin escreveram sobre quanto tempo deveria levar essa transição para o comunismo, especialmente nesses países, sociedades "atrasadas", ou não industrializadas, como a China e muitos países do sul global. Mas no final dos anos 70, com a reforma econômica e a abertura, a China reintroduziu elementos capitalistas que haviam sido praticamente eliminados durante o período do Mao Tsé-Tung. E por que? Claro, tivemos conquistas econômicas, tecnológicas, a reforma agrária, a questão de gênero. A vida do povo, por exemplo, durante os primeiros 30 anos, a expectativa de vida dobrou de 35 anos até quase 70. E a sociedade virou quase completamente alfabetizada, e várias outras coisas.

Mas apesar disso, a China ainda era bem pobre, muito subdesenvolvida, tinha também um contexto dessa ruptura sino-soviética, e por causa disso também a China escolheu se aproximar de novo dos Estados Unidos para três coisas. Primeiro, capturar, conseguir investimento financeiro, capital estrangeiro para desenvolver as forças produtivas. Mas junto disso, eu acho importante pra gente pensar, falando de Nova Rota da Seda e o que isso pode fornecer, é a segunda coisa - transferência de tecnologia. Porque a gente quer desenvolver essas tecnologias também, não é só fornecer mão de obra barata. E a terceira questão é a educação, a China mandou milhões de estudantes para os Estados Unidos, para a Europa, para aprender e trazer esse conhecimento de volta para a China.

Mas durante esse momento, com esse crescimento, a China também aumentou a economia muito rápido. Durante esse período de rápido crescimento econômico, a China aumentou o PIB em média 9% por ano, e ao mesmo tempo tirou 800 milhões de pessoas da pobreza extrema. Esse é um número enorme, é quase impossível entender, mas o que isso representa é a redução global durante esses 40 anos, a China foi responsável por 76% disso. Então para muita gente, na China, os [últimos] 40 anos foram os melhores em 4 mil anos de história.

Nesse sentido, uma das contradições que são bastante exploradas por aqui é o fato de que, assim como conseguiu erradicar a pobreza extrema, a China também se tornou o país com o maior número de bilionários do mundo. Como o governo pretende conter essas distorções?

Bom, isso é uma boa pergunta, agora a China é o país que tem mais bilionários do que outros lugares, sempre confunde a gente. Só para dar um contexto, acho que o anúncio da erradicação da pobreza extrema no país, de 1,4 bilhões de pessoas, é uma conquista incrível, historicamente, para o mundo. Inclusive a gente publicou no Tricontinental um estudo sobre isso, a gente conseguiu ir para o campo conversar com quadros, com camponeses e camponesas, com mulheres, com a juventude, para entender como a China conseguiu. Esse estudo chama “Servir ao Povo, a erradicação da pobreza extrema na China”, você pode acessar no nosso site.

Mas enfim, acho que os bilionários, eu vou contar uma história, eu ouvi falar, não sei se é verdade, mas virou uma lenda. É que quando o próprio Fidel Castro fez uma reunião com o presidente Xi Jinping, essa foi exatamente a questão, "o que você vai fazer com os bilionários?" Depois dessa conquista de erradicar a pobreza extrema, o governo está focando na questão da desigualdade, tem uma visão que a gente chama de prosperidade comum, é para enfrentar alguns desafios enormes no país agora, a gente chama de Três Montanhas, que é sobre educação, moradia e saúde. Principalmente nas cidades grandes, aqui o custo de vida se tornou bem alto. Como você vai responder isso, como você vai enfrentar a questão da desigualdade que vem crescendo durante esse momento de crescimento, é uma desigualdade entre campo e cidade, mas também entre regiões, porque o foco era para desenvolver o leste do país, e deixou para trás áreas no oeste, no centro do país.

Então, nesses últimos 2 anos, o governo iniciou grandes processos de controlar esses excessos de capital, e nas áreas de big tech, eu acho que os brasileiros devem ter ouvido sobre Alibaba, grande empresa de big tech. Também nos setores que foram privatizados, na educação, tem muita essa questão das plataformas digitais, o que fazer com dados, se dados são um bem comum ou se é uma coisa que pode ser privatizada e vendida, acho que é um grande debate agora. E muitas campanhas anticorrupção e anti-monopólio, de alguma forma se está enfrentando essa questão de desigualdade, como tantos bilionários chegaram na China. Mas a gente está acompanhando muito isso na DongSheng, e para quem quer ler mais notícias no dia a dia sobre essas políticas nacionais, pode seguir DongSheng News, que tem em português, está nas redes e tudo. 

Para finalizar, vamos mudar um pouco de assunto e falar sobre cultura. Você publicou recentemente um artigo que faz uma ponte cultural muito interessante entre a China e a América Latina. Você pode nos contar um pouco mais sobre esse seu trabalho e a importância dessa abordagem cultural para a relação entre os povos de diversas partes do mundo?

Sim, é ligado ao dossiê que o escritório da Argentina fez sobre multipolaridade, sobre olhar para a China. E quando a gente estava pensando na arte, descobrimos um mural enorme que é muito interessante, feito para um artista, Zheng Shengtian, que agora tem acho que 83 anos, imagina, ele é mais, eu não quero falar velho, mas ele é mais velho do que a Revolução Chinesa, eu consegui entrevistar ele e ele contou histórias incríveis sobre os intercâmbios artísticos e intelectuais entre China e países da América Latina, incluindo Cuba, Chile, México, China, principalmente nos anos 1950, porque era o momento da Conferência Bandung, na Ásia e na Indonésia, juntando muitos países no projeto anticolonial, isso foi o momento de abrir a China com muitos povos, muitos países no sul global.

Eu vou convidar qualquer pessoa para dar uma olhada nesse mural, você vai ver Frida, José Venturelli que era uma espécie de embaixador cultural, tem Siqueiros, porque a primeira visita dele para a China foi muito importante na construção da arte moderna na China, tem várias outras histórias que conectam os nossos povos. Eu acho muito importante resgatar isso agora porque às vezes a gente fala sobre a relação entre os estados, mas e o povo, como a gente se conecta? Também humaniza a nossa história, resgatar alguns laços comuns, porque isso vai ser importante para entender o outro e também criar laços mais fortes para o nosso futuro comum. 

* Tings Chak está no Twitter na conta @t_ings e o Dongsheng News em português pode ser acessado neste link.

Onde assistir ao programa

O Caminhos para o Mundo tem duração de 30 minutos e vai ao ar quinzenalmente, às terças-feiras, sempre às 20h, nos canais do Brasil de Fato e da TVT no YouTube.

Na TV aberta, o programa é exibido na TVT, canal 44.1 - sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC. 

Edição: Thales Schmidt