A população em situação de rua segue crescendo junto com a desigualdade, e coloca em xeque o famigerado "sonho americano". A Califórnia, estado mais rico dos Estados Unidos, continua na liderança do vergonhoso ranking de pessoas desabrigadas — são mais de 160 mil indivíduos sem ter onde morar e, infelizmente, essa conta está piorando.
Quem explica essa matemática perversa é a professora de arquitetura e planejamento urbano da UCLA, Dana Cuff. "Fizemos um levantamento e descobrimos que, anualmente, conseguimos transferir 20 mil pessoas das ruas para projetos habitacionais. Porém, neste mesmo espaço de tempo, 25 mil pessoas entram em condição de vulnerabilidade financeira e social, e acabam nas ruas", diz em entrevista ao Brasil de Fato.
O aumento progressivo da população desabrigada é motivo de críticas severas por parte do advogado Gary Blasi, que atua como professor de direito na UCLA. "A Califórnia não pode dizer que falta dinheiro para lidar com a crise habitacional porque, se fosse uma economia independente, este estado americano seria a sexta maior economia mundial", afirma.
Ainda de acordo com Blasi, que dedicou toda sua carreira acadêmica ao estudo das questões de moradia, a situação mais grave é registrada no condado de Los Angeles, onde, mesmo antes da pandemia, cerca de 600 mil famílias investem 90% de seus rendimentos apenas para quitar o aluguel. "Essas famílias geralmente não têm nenhum tipo de ativo, o que significa que qualquer desafio, como um problema de saúde ou uma demissão, pode colocá-los na rua rapidamente", explica.
Esse choque de realidade é o que faz o sociólogo Samuel Lutzker defender moradias sociais. "Precisamos de projetos sociais porque beira o absurdo acreditar que o mercado vai suprir a necessidade por moradia acessíveis, sobretudo em Los Angeles", pontua.
De fato, só neste ano, o valor médio do aluguel na cidade californiana disparou 3,43% em comparação com o ano anterior, colocando ainda mais pressão no orçamento familiar, que já é desafiado pela inflação, quase batendo 9%.
Para virar o jogo, Blasi explica que a única estratégia comprovadamente eficaz é "oferecer às pessoas desabrigadas algum tipo de moradia ou abrigo que seja melhor do que a condição de rua". Num primeiro momento, a frase do advogado pode soar estranha, já que qualquer abrigo, em teoria, é melhor que o abandono, mas Lutzker joga luz na realidade: "o problema com os albergues sociais e serviços de moradia assistencial é que, na maioria dos casos, eles tratam as pessoas de forma muito carcerária".
Para justificar seu ponto de vista, Lutzker resgata o programa "Room key", financiado pelo governo, que converte quartos de certos hotéis em abrigo para indivíduos desabrigados.
"Este projeto 'Room key' é um bom exemplo de como alguns programas são moldados como uma prisão, porque ele tem um toque de recolher às 7 da noite. Ou seja, quem não conseguir voltar para o quarto neste horário, é expulso pela noite — e isso, por si só, já é uma experiência traumatizante", diz.
Ainda sobre esta questão, Blasi defende que a solução é, portanto, "oferecer às pessoas moradia gratuita, ajudar a aumentar a renda das pessoas, para que elas consigam arcar com os custos do aluguel, e promover a oferta de casas acessíveis, para pressionar a queda do preço no mercado imobiliário", e completa, "há esforços em todas essas direções, mas, até agora, eles são notavelmente inadequados".
Colabora para o impasse da moradia o fato de que os bairros de Los Angeles, e da Califórnia em geral, são contra a construção de residências assistenciais em suas áreas."Quase todos os bairros da cidade não querem projetos de moradia acessível em suas ruas, porque as pessoas pensam que isso reduz o valor das propriedades, mas não há pesquisas que comprovem essa tendência", diz Dana Cuff.
Ainda segundo a arquiteta e planejadora urbana, essa quase "repulsa" por projetos de habitações sociais pode minar a nossa humanidade fundamental: "Precisamos estar com pessoas diferentes de nós para sermos civilizados. Quero dizer, a sociedade civil se apoia no fato de que podemos nos relacionar com pessoas que pensam de maneira diferente da nossa, têm aparência diferente da nossa, têm necessidades diferentes, criam seus filhos de maneira diferente. A pluralidade é o que nos faz humanos".
Ou seja, na vida real de Hollywood, o cenário que se apresenta é um filme de terror.
Edição: Arturo Hartmann e Thales Schmidt