O caso da menina de 11 anos, vítima de estupro, que foi coagida a manter a gravidez depois de ter negado seu direito ao aborto legal trouxe à tona o tema da interrupção da gravidez no país.
O artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940 deixa claro que o aborto é considerado legal quando a gravidez é resultado de abuso sexual, ou põe em risco a saúde da mulher. Ainda assim, o serviço de aborto legal exigiu que a família da vítima buscasse uma autorização judicial para realizar a interrupção da gestação.
Por que o tema do aborto ainda é um tabu na sociedade? Quais os caminhos a serem tomados para a descriminalização do aborto? Para falar sobre o tema, o Brasil de Fato conversou com Kauhara Hellen, cientista social e militante do Fórum Cearense de Mulheres.
Queria começar perguntando por que o tema do aborto de gestação ainda é um tabu na sociedade?
De fato, o aborto é considerado um tabu na nossa sociedade. É importante que a gente procure compreender todas as estruturas que se movimentam para situar o aborto dentro desse campo do tabu, dentro desse campo do polêmico, do assunto que não deve ser conversado, que não deve ser tratado.
É um tema muito censurado de diversas formas e a gente tem exemplos muito fortes disso. Um deles, e que é bastante recente, é esse caso que você citou no início da nossa conversa, sobre a criança em Santa Catarina que precisou enfrentar todo um processo de violação de direitos, todo um processo de violência. É uma falha. Diversas falhas em várias etapas da assistência para, de fato, acessar o direito ao aborto legal.
A gente tem aí um problema muito grave que é uma legislação muito antiga, que garante esse direito, mas que é fragilizada facilmente por outros poderes, por outros discursos, por outras relações de poder e uma das questões muito forte para de fato fragilizar esse direito é o fundamentalismo religioso. O fato do nosso estado não ser laico. Então essa falta de laicidade fragiliza de forma muito fácil esse direito.
A gente percebe que o fundamentalismo religioso se pauta, principalmente, nessa culpa, que as mulheres são culpadas, que elas devem ser castigadas, impedidas de exercer um direito seu sobre decisões relacionadas à maternidade. Então a gente vê que o fundamentalismo religioso é uma questão muito forte.
Também tem o fato de que a gente vive em uma sociedade estruturada dentro do patriarcado, dentro da misoginia, que é esse ódio às mulheres, que é essa facilidade de se banalizar a violência contra as mulheres, é a cultura do estupro que está sempre para a gente ali.
Tem outras questões que também se relacionam com esse tabu de se falar sobre aborto, que também é toda essa falsa ideia de proteção à vida, quando na verdade a gente vê na prática uma enorme negligência com a vida, uma enorme negligência com a vida das mulheres, uma enorme negligência com a vida das crianças, com a vida dos bebês. Ela vive uma realidade de violência obstétrica extremamente grave no nosso país e quando a gente fala, por exemplo, de direito ao parto humanizado, a uma assistência humanizada a gente está falando de saúde, de segurança, de informações baseadas em evidências científicas atualizadas que priorizem o bem-estar, que priorizem a saúde e, no entanto, são questões completamente esquecidas por quem se diz, se forja dentro dessa proteção à vida.
O debate sobre aborto de gestação no Brasil pode ser considerado um tema de saúde pública e de direitos?
Sim. Justamente. A nossa luta é para situar a discussão sobre aborto dentro do campo da saúde pública, porque a gente conhece os impactos da criminalização e sabe muito bem que a criminalização do aborto, de uma forma geral, além de toda a violação que as pessoas que buscam o aborto legal passam, a criminalização como um todo gera muitas vítimas, gera muitas mortes. A gente vê que a mortalidade materna no nosso país é uma das grandes questões. Pode até trazer comoção, quando a gente fala de mães, de mulheres que morrem em situação de parto, em situação de abortamento, gera uma certa comoção, mas é uma questão, uma realidade que não mobiliza estratégias concretas de enfrentamento a isso, de prevenção a isso.
A gente precisa situar o aborto dentro do campo da saúde pública porque, de fato, ele é uma questão muito grave de saúde, é uma das grandes causas de morte materna. Aí a gente mais uma vez volta para esse lugar de falácias, de discursos falaciosos de proteção à vida. Como é que a gente está tentando proteger a vida criminalizando o aborto e punindo as mulheres, quando na verdade as mulheres estão morrendo? Não existe. Isso é uma falsa relação que se cria para fortalecer determinados discursos, mas a gente, quando conhece a falácia deles, a gente consegue fortalecer uma outra narrativa e, como consequência, a gente consegue travar uma luta.
O aborto é uma questão de saúde pública, é uma questão de direitos e a luta das mulheres, dos movimentos de mulheres, dos movimentos feministas, que estão focados, justamente, em trazer essa discussão para fora do campo da polêmica. Nós conhecemos as mulheres que abortam, nós conhecemos a realidade por trás da criminalização. A gente sabe que é uma luta muito importante situar o aborto dentro do campo da saúde. Então a gente não só pode situar o aborto, a luta pela legalização do aborto como uma questão de saúde pública, como a gente deve, porque é a forma mais coerente de se falar sobre a vida das pessoas.
A legalização do aborto não pode ser algo que a gente considere apenas uma pauta do movimento feminista. A luta pela legalização é uma luta por democracia, é uma luta por saúde, é uma luta pela vida das mulheres indígenas, pela vida das mulheres quilombolas, é uma luta antirracista, é uma luta muito grande. Então ela está permeada, atravessada por várias outras questões e a gente vê às vezes um isolamento muito grande de uma questão que é muito grave, que é muito impactante na vida de tantas mulheres. A gente sabe que as mulheres são protagonistas no campo da militância, então jamais a gente pode tirar o aborto de dentro desse campo dos direitos, da saúde pública, do racismo.
É uma missão que a gente tem enquanto esquerda. A gente não pode negociar essa pauta, a gente não pode adequar essa pauta porque ela é uma questão de saúde pública e a saúde pública é um pilar da luta por dignidade, por democracia, e por uma série de outras questões.
Em que situações é permitido a realização do aborto legal?
A legislação brasileira garante o direito ao aborto em três casos. Primeiro, em caso de violência sexual; segundo, em caso de risco à vida da gestante; terceiro, em caso em que não há uma formação cerebral do feto. São esses os três casos que a lei permite a realização do aborto.
Como está o debate da legalização do aborto no Brasil?
Acredito que a gente está em um momento bem importante para a luta da legalização do aborto, não no sentido de que nós vamos conquistá-lo muito em breve, não é nesse sentido. A gente sabe que as conquistas para as lutas não podem medir por esse parâmetro absoluto, mas por vários outros processos em que a gente entende que avança. A gente teve alguns fatos políticos importantes reverberando, movimentando o nosso país.
Eu acho que a gente está num momento de discutir mais e tirar esse assunto, cada vez mais, de dentro do campo do tabu. É o momento em que a esquerda também tem uma tarefa importante de não negociar esses direitos. Novamente, reforçando que lutar pela legalização do aborto não é uma tarefa apenas das mulheres e dos movimentos feministas. É uma tarefa de toda a esquerda. Então a gente precisa estar mostrando que essa é uma questão de saúde pública. A gente precisa qualificar a nossa discussão e perder o medo de falar sobre isso.
Como é o processo da realização do aborto legal no estado do Ceará? Quais caminhos uma pessoa vítima de estupro, por exemplo, deve fazer para conseguir fazer esse procedimento?
A gente tem um processo muito crítico no nosso estado. A realidade que eu conheço melhor é a realidade de Fortaleza, e em Fortaleza a gente tem dois hospitais que são instituições de referência a serem procurados por vítimas de violência sexual, a Maternidade Escola e o Gonzaguinha de Messejana.
Lembrando que, em um processo de violência sexual, o primeiro serviço que deve ser procurado é o serviço de saúde e este serviço de saúde não está submetido a um Boletim de Ocorrência, isso precisa ser dito porque a gente sabe que esse assunto existe muita falta de transparência e muita falta de informação qualificada, publicizada, informações objetivas, e muitas vezes as pessoas ficam, ainda mais quando você é vítima de violência como a essa, a sensação de não saber o que fazer pode ser bem presente.
O Gonzaguinha de Messejana está sendo fechado para reforma. O hospital vai ser demolido, isso é uma definição da Prefeitura e isso está movimentando uma série de setores porque, de longe, é o hospital que mais tem fluxo para atendimentos, a maternidade que atende ali a grande Messejana. Então a gente sabe que o fechamento do hospital vai impactar muito a vida dessas mulheres. São serviços muito importantes que são atendidos ali e, especificamente, para o aborto legal isso vai gerar algo muito forte, muito pesado na nossa cidade, porque a gente tem apenas dois hospitais de referência, o de grande porte é o Gonzaguinha de Messejana. Desativando esse serviço no Gonzaguinha de Messejana a gente só vai ter um hospital de referência que é a Maternidade Escola.
Mas também existe um processo que está acontecendo de mobilização, existe um processo que está acontecendo de definição sobre para aonde vão esses serviços, algumas mobilizações que estão acontecendo para tentar negociar, garantir, minimizar os danos desse fechamento para que não seja algo tão drástico na vida das mulheres.
Quais os caminhos para a descriminalização do aborto de gestação? E como a população pode contribuir para essa descriminalização?
Os caminhos para a gente descriminalizar ainda estão dentro do campo de retirar a discussão sobre aborto, arrancar essa discussão sobre aborto de dentro do campo conservador, de dentro do campo fundamentalista, do tabu, trazer essa discussão para perto das mulheres. A gente sabe que o aborto é realizado historicamente na vida das pessoas, da humanidade e a gente não aceita que isso seja colocado cada vez mais destro desses campos.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia