O jongo para além do toque, canto e dança, é a reafirmação todos os dias do nosso povo preto
Você sabe o que é o jongo? “O jongo é uma manifestação afrobrasileira que veio no tempo dos escravizados por volta dos século XIX, nas fazendas cafeeiras, e que principalmente era usado como forma de comunicação”. É assim que surge o jongo, essa linguagem poética e cifrada praticada pelos negros escravizados como modo dos seus senhores não decifrarem o que estavam dizendo na época.
Quem conta a história dessa dança de roda praticada ao som de cantos e tambores e persiste até hoje é a jongueira Bianca Lúcia. Bianca faz parte da Comunidade de Jongo Dito Ribeiro. O grupo de pessoas e familiares de Campinas, interior de São Paulo, completa 20 anos neste mês.
“Dito Ribeiro sempre foi um bom mineiro, Dito Ribeiro sempre foi um bom mineiro, comendo pelas beiradas ele comia um prato inteiro”. O nome da comunidade “Dito Ribeiro” é em homenagem ao jongueiro, Dito Ribeiro, nascido em 1905 na cidade mineira de Caldas, casou com a Benedita e depois foi para Campinas, onde manteve a tradição recebida de seus pais, realizando rodas de jongo.
“Ele era jongueiro, fazia jongo em Minas, veio para São Paulo e continuou fazendo a tradição. O jongo naquela época era diferenciado, somente os homens participavam e as mulheres e crianças não. A gente acredita que é por isso, que o jongo adormeceu assim que ele faleceu, porque não teve a transmissão de saber dessa tradição”.
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“Dito Ribeiro era um cozinheiro de mão cheia, não era letrado, lia o jornal de ponta cabeça, mas sabia de tudo que estava escrito; era muito acolhedor, acolheu diversas pessoas na beira da ferrovia, levou para casa, cuidou, alimentou, devolveu com um emprego. Dito Ribeiro sempre sabia o que estava dentro da barriga de grávidas, por isso, brincavam ‘Dito Ribeiro, se o senhor adivinhar vai ser padrinho’, com isso, ele tinha mais de 40 afilhados”, conta Bianca, bisneta de Dito Ribeiro.
Após 40 anos do falecimento de Dito Ribeiro, a comunidade resgata a tradição. De rodas de jongo ao Arraial Afro Julino, a Comunidade Dito Ribeiro realiza na Casa de Cultura Fazenda Roseira, equipamento público de atividades de preservação do jongo, educação, tradição e da memória das culturas de matrizes africanas. A fazenda data de 1830, mas é fruto de mobilização social do movimento negro, ela foi ocupada pelo grupo em 2008, que conseguiram a permissão de uso do espaço somente em 2015.
Bianca explica que todas atividades na Fazenda estão envoltas principalmente neste roteiro afroturístico que é a vivência em conhecer o espaço historicamente. Tem oficina de percussão, turbante e até pós-graduação lato sensu em matriz africana.
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A jongueira Flávia Tamires faz parte da gestão da Fazenda Roseira. Para ela, o jongo ensina que a resistência é cotidiana. “Conheço [o jongo] quando começo a me entender como mulher preta na cidade de Campinas e tenho o primeiro contato. O jongo para além do toque, canto e dança, ele é a reafirmação todos os dias do nosso povo preto, quem somos, da onde pisamos e porque pisamos”.
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A comunidade vivencia o jongo e também abre para o público geral para o que eles chamam de pisa na tradição. Flávia afirma que o jongo para ela é o respirar, e a certeza que as próximas gerações vão continuar esse legado.
“O jongo é o coração que pulsa do candongueiro, ele é o viajante que me faz querer cada dia mais buscar o conhecimento e é o trovão entender através da marcação do meu pé onde eu preciso voltar e pra onde eu quero ir”.
O jongo foi reconhecido como patrimônio imaterial brasileiro pelo Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O jongo Dito Ribeiro comemora desde 2002 o seu nascimento com um arraial junino todos os anos, que chega a reunir sete mil pessoas. Neste ano ficou restrito a duas mil.
“Esses 20 anos de Comunidade Dito Ribeiro não podemos dizer que foram fáceis, mas com certeza muito resistentes e fazendo a manutenção da nossa tradição, salvaguardando o jongo que é o nosso principal objetivo que é não deixar que ele nunca morra. E o nosso desafio, é principalmente com a Casa Fazenda Roseira, que é o primeiro caso que o patrimônio imaterial que é o jongo preserva o material, então possivelmente se o jongo sair daqui, esse espaço será demolido”, diz Bianca.
Segundo o inventário do Iphan, o jongo é praticado nas periferias das cidades e em comunidades rurais do sudeste brasileiro. As comunidades jongueiras têm uma série de representações musicais, coreográficas e simbólicas e em comum têm os saberes, as crenças, os ritos de origem africana, que remetem a cultura e a religião de matriz africana.
Edição: Douglas Matos