A fome se alastra pelo país como uma sombra que vai encobrindo cada vez mais vidas, destruindo sonhos e famílias por onde passa. Na última semana, esse assunto voltou à tona com grande repercussão, após a divulgação de um estudo da ONU que aponta o grande aumento da fome no Brasil. Em junho, o lançamento do "Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Brasil", da Rede Pessan, que reúne várias entidades dedicadas ao assunto no país, apresentou uma realidade também muito severa, apontando que 14 milhões de pessoas no Brasil entraram no mapa da fome apenas entre o final de 2020 e o início de 2022.
O número de brasileiros e brasileiras passando fome quase dobrou em menos de dois anos. É um escândalo! Sobretudo quando falamos de um país que figura entre os que mais produzem e exportam alimentos no mundo. Os dados são aterradores e não podem ser ignorados.
Segundo a mesma pesquisa da Rede Pessan, mais da metade da população brasileira, 58%, vive em situação de Insegurança Alimentar (IA). 30% da população convive com a restrição do acesso a alimentos e 15% passa fome, diariamente. Falamos de um universo de 125 milhões de pessoas para as quais a incerteza quanto ao que comer diariamente impera, sendo que para 33 milhões dessas a única certeza diária é a fome.
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No último ano, em pelo menos 24% dos domicílios brasileiros que enfrentam a fome houve relatos de algum morador submetido a humilhação para conseguir alimentos. Isso significa quase 16 milhões de pessoas tendo sua dignidade ferida e seu Direito Humano à Alimentação Adequada, assim como define a ONU, destruído.
O perfil das pessoas mais atingidas não surpreende, haja vista o perfil histórico do abismo social brasileiro: população negra em geral, mulheres, nortistas e nordestinos e pessoas com baixa escolaridade. Boa parte delas estavam em domicílios que conviviam com desemprego ou precarização do trabalho; foram severamente impactadas pela queda da renda, o aumento da inflação de alimentos, a exclusão da rede de proteção social e/ou perda do poder de compra dos benefícios sociais recebidos.
O que explica que tenhamos retrocedido tanto em tão pouco tempo? Sim, em 2014, no governo Dilma, o Brasil havia sido retirado do Mapa da Fome da ONU. Agora, poucos anos depois, esse flagelo voltou com toda força. Ao contrário do que muitos pensam, não foi a pandemia a maior responsável por isso. A grande culpada é a agenda econômica e social surgida do golpe de 2016.
O golpe IMPÔS à sociedade uma agenda de acumulação de renda, destruição de direitos e deterioração da rede de proteção social. Impôs um novo "pacto social", voltado à preservação das elites econômicas em tempos de crise. Para isso, em nome de uma suposta "saúde fiscal" e da contenção da dívida pública, apostou todas as fichas da economia na austeridade, retraindo a capacidade de iniciativa econômica e de investimento na entrega de serviços sociais por parte do Estado, prometendo que o mercado, agora mais confiante, cuidaria do resto.
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O carro chefe dessa política foi a EC 95, conhecida como "Teto de Gastos", que amarra o Estado brasileiro numa verdadeira camisa de força, obrigando-o a manter ou, na prática, a reduzir despesas com gastos primários (aqueles que financiam todos os serviços públicos, sociais e os investimentos) ao longo dos anos, até 2036. Tal política, que destoa até mesmo de pacotes conservadores aplicados mundo afora, praticamente suspende o projeto social pactuado na Constituição de 1988, na medida em que limita radicalmente a flexibilidade no uso do orçamento brasileiro em tempos de crise e obriga o contínuo desinvestimento em políticas sociais num país tão desigual como o nosso. Uma perversidade completa.
Junto com o "Teto de Gastos" veio a Reforma Trabalhista, que prometia aumentar a oferta de empregos no país diminuindo as obrigações dos empregadores frente aos trabalhadores. Ainda na campanha de 2018 Bolsonaro bradava: "menos direitos, mais empregos". Essa reforma alterou várias regras que vão de férias à intermitência do trabalho, de fragilização da justiça do trabalho à facilitação da demissão, jogando os trabalhadores numa zona de total instabilidade.
Além delas houve também a Reforma da Previdência, medidas regressivas na tributação e a lei da terceirização, todas na mesma direção: condicionar a retomada do crescimento ao desmonte da "onerosa" rede de direitos e proteção social, colocando nas costas dos trabalhadores os custos da crise econômica e impondo um modelo de concentração de renda/manutenção de privilégios.
Essa agenda é um fracasso: não trouxe a retomada econômica, diminuiu a renda dos brasileiros, trouxe de volta a inflação, agravou as desigualdades sociais e, ao fim e ao cabo, aumentou a dívida liquida e bruta do Estado. Quando a COVID chegou ao país encontrou um povo mais pobre, menos protegido, com a vida crescentemente precarizada. Um desastre! O que a pandemia fez foi aprofundar e acelerar um processo já em curso, diante de um Estado "amarrado" e de um governo criminoso e desumano.
Para boa parte dos especialistas, o crescimento exponencial da fome no Brasil de 2017 até aqui tem tudo a ver com a escolha dessa pauta econômica, promotora do que chamamos "economia da fome". Ela tirou todas as possibilidades do Estado aumentar investimentos para impulsionar a economia, gerar empregos e reagir à crise, ao mesmo tempo em que reduziu os gastos em políticas sociais, minando a rede de proteção social do país.
Além dos danosos resultados econômicos que delimitamos anteriormente, também facilitou o desmonte da educação e a destruição institucional na rede de assistência social, ocorrida desde o primeiro dia do governo Bolsonaro. Resultado: aumento das desigualdades, da miséria, da fome. Essa agenda pôs a segurança econômica das elites como valor acima da existência e da dignidade da maioria pobre do país.
Para superar a fome temos que vencê-la, derrotando mais uma vez o falso dilema “responsabilidade econômica ou justiça social?”. A distribuição de renda e o investimento social podem e devem ser o motor a impulsionar um responsável e justo desenvolvimento econômico. A defesa da democracia passa necessariamente por um novo pacto social que viabilize isso.
A economia deve servir à sociedade, não o contrário. E o valor maior de qualquer sociedade é a preservação da vida e dos direitos básicos de seus cidadãos.
*Doutor em ciências sociais e membro da direção estadual do PT-PE.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Pernambuco
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Elen Carvalho