A quantidade de famílias aptas para receber o Auxílio Brasil, mas que ainda não receberam o benefício, é de 2,78 milhões, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), com base em dados registrados até abril deste ano. Em relação a março, houve um aumento de 113% na quantidade de famílias na espera. É a maior fila desde novembro de 2021, quando a demanda reprimida por família chegou a 3,1 milhões e quando o Bolsa Família foi substituído oficialmente pelo novo programa.
Além do empobrecimento da população diante da alta da inflação, do desemprego e do emprego informal, especialistas em benefícios e assistência sociais associam a fila do Auxílio Brasil diretamente ao desmantelamento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e de seus braços, como os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), e de suas ferramentas, como o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).
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Em sites como o “Reclame aqui”, é possível encontrar relatos de quem ainda não conseguiu acessar o benefício. “Estive no Cadastro Único de Parnamirim/RN no mês passado para realizar uma atualização do cadastro e me deparei com o fato de que neste momento, estes equipamentos atuam com uma demanda altíssima e que o governo não tem conseguido dar respostas e vazão para esta demanda pela proteção social, em um momento delicadíssimo para a economia, como este que estamos vivendo”, relata uma mulher.
“Basta conversar com os assistentes sociais responsáveis pelo cadastro para entender o tamanho do gargalo. Uma pessoa que se muda de localidade precisa atualizar o cadastro e o procedimento de análise pode durar até 4 meses. No mesmo dia, pessoas que já haviam esperado o prazo e retornavam ao equipamento eram informadas que teriam que esperar mais 4 meses. Quem, que uma vez dependendo do Auxílio Brasil pode aguardar um prazo destes sem perspectiva ou qualquer segurança de que o benefício será aprovado?”
A situação do CRAS hoje no Brasil
Segundo Priscilla Carvalho, integrante do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e assistente social no município de Paulista, na região metropolitana do Recife, em Pernambuco, explica que hoje existem uma média de dois cadastradores por CRAS nos municípios de pequeno porte, que somam a maioria dos municípios brasileiros, e uma média de cinco cadastradores nos centros de municípios de maior porte, para atender a uma demanda de aproximadamente 200 famílias por dia, de acordo com dados do Censo SUAS. “Como dois cadastradores do CadÚnico vão dar conta disso? Você atende ali, de forma muito prejudicada, 50 por dia”, afirma Carvalho.
Não há informações atualizadas, entretanto, da média dos quadros de funcionários do CRAS. A assistente social afirma que esses dados eram sistematicamente coletados pelo Censo SUAS, anualmente. “No Brasil, não tinha nenhum município que não tivesse CRAS. A gente tinha ali por volta de 8.700 CRAS espalhados por todo o Brasil. Hoje já não se pode dizer que esses dados são a realidade, porque o governo não tem levado a cabo a sistematização do Censo SUAS, que era um momento de reconhecer como estava o andamento da assistência, como os equipamentos estavam funcionando. Eles não têm feito isso, assim como não tem feito com o PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios]”.
Há, portanto, um desconhecimento da realidade do CRAS. Empiricamente, no entanto, “o sucateamento grita”. A assistente social lembra que desde o início da pandemia de covid-19, quando a crise econômica se intensificou, os CRAS passaram a ser mais demandados.
“Desde a pandemia, os CRAS do Brasil inteiro têm amanhecido abarrotados de pessoas em busca de benefícios eventuais. E isso acontece no momento em que esses CRAS estão sucateados, sem recursos humanos suficientes, extremamente precários do ponto de vista da estrutura, e colocando a população e os trabalhadores em condições assim aviltantes. É muito desgastante hoje trabalhar na assistência, porque a gente lida com um recorte da realidade muito cruel, mas também lida com condições de trabalho muito precárias”, afirma Carvalho.
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Os recursos que sustentam os CRAS são dos fundos municipais e do Fundo Nacional de Assistência Social, gerido hoje pelo Ministério da Cidadania. Ocorre que muitos municípios de pequeno porte vivem basicamente dos recursos federais. A mesma cesta de recursos é utilizada para a contratação de funcionários concursados para atuar no CRAS. “Mas a realidade não tem sido essa. Hoje são poucos profissionais concursados. A maioria são contratados mediante contrato precário, muito cargo comissionado. É um problema aí também de recursos humanos muito frágeis. São poucos os municípios que têm servidores instituídos por lei para trabalharem na assistência.”
É nesse cenário que “o Auxílio Brasil vem de paraquedas e não encontra os equipamentos minimamente estruturados para poder operacionalizar. Pelo contrário, encontra municípios com os CRAS sucateados ou municípios até com o número de CRAS insuficientes. Isso tem contribuído para essa execução desastrosa que tem sido do Auxílio Brasil. Por isso, o Bolsonaro vai abrir a torneira dos cofres públicos, com o interesse eleitoreiro, mas vai esbarrar nesse gargalo operacional, por conta de desmonte, desarticulação e desfinanciamento”, afirma a assistente social.
CRAS e CadÚnico: portas de acesso à assistência social
O CRAS e o CadÚnico são conhecidos como a porta de acesso aos serviços da assistência social no Brasil. Por meio dos centros, as populações em situação de vulnerabilidade recebem orientações e auxílios diretos como cestas básicas e são inscritas em programas de benefícios. É no CRAS que tais populações são inscritas no CadÚnico, por meio do qual gerado o Número de Identificação Social (NIS), que é como se fosse uma chave para acessar os diferentes programas sociais, como Minha Casa, Minha Vida, Programa de Cisternas, Tarifa Social de Energia Elétrica e o finado Bolsa Família. É por meio da identificação do NIS, por exemplo, que são realizados os trâmites do Auxílio Brasil.
O CadÚnico reúne uma extensa gama de informações sobre a realidade socioeconômica das famílias em situação de vulnerabilidade, com questões sobre condições sobre alimentação, saúde, moradia, renda e educação. “É no atendimento face a face que a gente identifica, inclusive, outras demandas da população que vai se inscrever no CadÚnico. São cadastradores que podem, por exemplo, encaminhar a população para assistente social psicóloga, pedagoga, para equipe técnica do CRAS trabalhar outras vulnerabilidades”, afirma Carvalho.
Com esse arcabouço, o CadÚnico é considerado uma ferramenta essencial para a formulação e implementação de políticas públicas por pesquisadores, uma vez que permite o registro de todos os dados referentes à condição socioeconômica de uma pessoa; serve como uma espécie de direcionamento de cada pessoa para determinadas políticas sociais, de acordo com os dados registrados; e ainda é utilizada como base de dados das populações para a formulação e o manejo de políticas públicas. “É uma base de dados não só para assistência, mas também para a orientação das políticas públicas como um todo”, afirma Carvalho.
É um cadastro, portanto, que demanda tempo e capacitação, o que esbarra no sucateamento dos CRAS. Hoje, Carvalho afirma que o preenchimento do CadÚnico é feito “a toque de caixa e despreza todas essas outras questões que são estruturantes para as famílias que vão acessar aquele benefício”.
“Quantas pessoas não chegam no CadÚnico para o cadastro e relatam que não têm o que comer naquele dia? Aí a equipe técnica entra em ação para poder garantir algum benefício para cessar a insegurança alimentar. É por isso que é estratégico o CadÚnico estar dentro do CRAS, porque há essa interface e comunicação direta entre o CadÚnico e o acompanhamento da vulnerabilidade e a satisfação das necessidades.”
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O relato se soma com o de Eder Frossard, assistente social no município de Valença, no Rio de Janeiro. “Recebo relatos que eu não recebia antes. Até 2017, eu não via gente virar para mim e falar que estava numa rodovia para pegar lenha. Ou então, um caso recente, em que a pessoa falou que estava com saudade de comer um lanche inteiro. São relatos de pessoas que chegam no CRAS, porque eu vou perguntando porque preciso entender minimamente a sensação que elas estão tendo naquele local que elas vivem, até mesmo para justificar, por exemplo, a entrega de uma cesta básica”, afirma Frossard.
A historiadora Denise De Sordi, pesquisadora do programa de pós-doutorado dos Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ), explica que, desde a criação do CadÚnico, em 2001, atribuiu-se à ferramenta a tentativa de organizar as políticas sociais a nível nacional, “no sentido de sistematizar todos programas e entender quem era o público desse mundo”, explica De Sordi.
“No fundo, nós estamos falando nada mais nada menos do que a definição de quem são os pobres no Brasil. Uma forma também de mapear as pessoas e suas necessidades. Ou seja, [o CadÚnico] oferece esse retrato do país. Por isso que a gente fala que ele é a porta de acesso aos programas sociais.”
::Servidores denunciam precarização e abandono do Creas::
Como, já explicitado por Carvalho, outros programas articulados pelo CadÚnico “estão desmontados ou não estão ocorrendo como antes, se a pessoa vai no CRAS, que também está sucateado sem assistência social suficiente para atender todo mundo, a gente não tem mais os índices de qualidade de cadastro dos beneficiários”.
“Será que ainda estão sendo coletados todos aqueles do CadÚnico? Será que o assistente social, para agilizar ali na condição de trabalho precária, também não está fazendo um cadastro simplificado só pra gerar o NIS, já que os dados solicitados pela Caixa são os básicos, não mais todos aqueles solicitados pelo CadÚnico?”, questiona De Sordi, que se dedica há anos à pesquisa sobre políticas e programas sociais.
“Tudo indica que esse acompanhamento minucioso que antes era realizado em articulação com os assistentes sociais, como SUAS, com o Plano Nacional de Assistência Social lá de 2004, não tá mais sendo feito.”
Mudança do Bolsa Família para o Auxílio Brasil
Priscilla Carvalho também associa o desastre da operacionalização do Auxílio Brasil à lacuna informacional que se criou quando o programa foi instituído e deixou para trás as estruturas que já eram utilizadas para operacionalizar Bolsa Família. “Houve uma intensificação do sucateamento da assistência social atrelada à mudança do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, porque nessa mudança criou-se uma lacuna de orientações, normativas e de fluxos”, afirma Carvalho.
Para se ter uma ideia, Carvalho relata que a operacionalização do Auxílio Brasil é algo obscuro para a própria assistência social, o que reflete em um atendimento precário para a população. “O Ministério da Cidadania não tem nenhuma cartilha de orientação ou um instrumento que direcione o trabalho na ponta. O que os técnicos têm feito é se informar através do que sai na mídia, o que é extremamente confuso. Afinal, o governo uma hora diz uma coisa, outra hora diz outra”, diz.
Ao mesmo tempo em que se criaram lacunas informacionais, a interseccionalidade com outras políticas, que era um dos pilares do Bolsa Família, deixou de existir. A “intersetorialidade é ferida de morte”, diz Carvalho. “O Bolsa Família tinha uma articulação com a saúde e a educação, através das condicionalidades”, como a vacinação das crianças das famílias em dia e a comprovação da frequência escolar, “o que fazia com que esse usuário transitasse por essas políticas da assistência para saúde para educação, de modo que essas políticas estavam ali com conversando e dialogando para a efetivação de direitos.”
Com o Auxílio Brasil, tais condicionalidades caíram por terra, o que esvaziou o sentido da interface entre os programas. “Isso era muito bem alinhavado quando era o programa Bolsa Família, porque inclusive as crianças que tinham baixam frequência já eram acompanhadas através de um sistema de condicionalidade. Então, a gente já sabia que ali existia uma questão que demandava um acompanhamento familiar. Normalmente essa criança estava faltando na escola por trabalho infantil, violência doméstica ou precarização mesmo da vida que impossibilitava a frequência. De todo modo, situações que demandavam acompanhamento técnico, ou seja, o acompanhamento de assistentes sociais”.
Interesse eleitoreiro
Há uma unanimidade entre os especialistas ouvidos que o aumento no Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, aprovado pelo Congresso Nacional, poderia ter sido feito em anos anteriores, como defendeu em diversos momentos a oposição ao governo Bolsonaro.
Cláudia Baddini, economista e ex-diretora do CadÚnico, afirma que o governo “teve todas as possibilidades se planejar, para falar o mínimo. A gasolina estava subindo e todo mundo sabe disso. Não percebeu que as pessoas já estavam passando fome? É preocupante. Na verdade, existe essa percepção de que tudo foi feito sem prioridade. A coisa foi meio a reboque, não era uma coisa uma política pública. Aí agora, a três meses antes da eleição, percebe-se que é fundamental”.
Baddini lembra, entretanto, que “as pessoas já estão com essa necessidade com tempo. Então, realmente, eu estou chamando de ‘falta de planejamento’ para dizer o mínimo. Não é uma prioridade. Tanto que é só a transferência de renda que é feita. A gente sabe que a política de proteção social é muito maior do que isso”.
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A maior prova de que o Auxílio Brasil não foi pensado no escopo do que se entende por proteção social é o processo de financeirização atrelado ao benefício, a margem da assistência social. De acordo com a Medida Provisória 1.106, o beneficiário poderá comprometer até 40% do novo auxílio de R$ 600 com crédito consignado, o que representa R$ 240. O valor é maior do que o aumento de R$ 200 que o Congresso autorizou e que será pago somente até dezembro deste ano.
“Para os bancos, é muito bom porque para eles é um dinheiro que já tem o pagamento certo, mas e depois de dezembro? Essas famílias vão ter quanto de benefício? Mas aí as famílias já se endividaram para poder comer. Tudo isso está muito nebuloso. Parece que as coisas são feitas muito sem planejamento. Isso é um fator muito complicado quando se está trabalhando com qualquer tipo de política pública”, afirma Baddini.
Por esse aspecto mostra, segundo a historiadora Denise De Sordi, que o Auxílio Brasil deixa de ser um programa social para ser um programa de acesso à financeirização. “O personagem principal desse programa agora é um banco. A quem isso favorece? Tem agora o auxílio de quatrocentos reais, e agora o endividamento. Não é um financiamento de uma casa. Tudo indica que esse dinheiro vai ser utilizado pra pagar conta, pra comprar comida”, defende.
Fila zerada?
Apesar de ter anunciado, em 28 de janeiro deste ano, que a fila do Auxílio Brasil havia sido zerada, o governo federal não tem dados atualizados sobre a quantidade de famílias que aguardam ser incluídas no programa.
Denise De Sordi questiona, no entanto, o anúncio do governo federal. “Fila zerada: onde? Eu também queria saber, falando muito sinceramente. Ninguém está conseguindo acesso a esses dados. É estranho falar em zerar a bolsa do Auxílio Brasil em janeiro, porque em dezembro a gente teve dados assustadores de insegurança alimentar e desemprego. Como que essa fila foi estabelecida? Quem são essas pessoas? Essas pessoas estavam no CadÚnico? Elas eram beneficiárias? Se não abre mais vaga na fila, a fila acaba. O que a gente está chamando de fila?”, questiona.
O Brasil de Fato questionou o Ministério da Cidadania, em 21 de junho deste ano, sobre a quantidade de brasileiros aptos a receber o benefício, mas que ainda não foram incluídos no programa. Após 20 dias, a pasta solicitou uma prorrogação do prazo de 10 dias para atender à solicitação, alegando “complexidade para elaborar resposta”. O Brasil de Fato aguarda um retorno.
Edição: Rodrigo Durão Coelho