Em duas decisões favoráveis recentes, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou que a escassez de recursos não é motivo para excluir de programas habitacionais as famílias removidas de favelas e ocupações. A Justiça também obrigou a Prefeitura de São Paulo a obedecer o Plano Diretor, em relação ao atendimento habitacional definitivo.
As duas decisões judiciais foram conquistadas pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos nas últimas semanas e são importantes no debate municipal sobre o direito à moradia digna e ao atendimento habitacional. Elas representam mais de 400 famílias do Córrego Zavuvus e do Jardim Gaivotas, e podem servir como referência para outras situações em que famílias tenham esse seu direito fundamental negado pela Prefeitura de São Paulo.
A longa espera das famílias do Córrego Zavuvus
A primeira situação diz respeito a mais de 400 famílias do Córrego Zavuvus, localizado na zona sul da capital. Elas foram despejadas de suas casas pela prefeitura em 2011, para a realização de obras de contenção de risco, e aguardam desde então a sua vez para serem atendidas definitivamente.
As famílias recebem o auxílio aluguel e aguardam há muitos anos o atendimento habitacional definitivo, sem nenhuma perspectiva de quando receberão sua moradia. Vale destacar que o auxílio aluguel é de R$ 400,00, valor que não dá conta de custear totalmente um aluguel.
Ao longo da espera, que se estende há mais de uma década, já ocorreram situações difíceis coisas como a prefeitura dar às famílias falsas esperanças de que seriam atendidas em um empreendimento habitacional e depois disponibilizar as unidades habitacionais para outros, ou mesmo tentar cortar o auxílio-aluguel em situações como o falecimento do titular que não aguentou esperar tantos anos, recusando-se a transferir a outro membro da família.
Agora, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos conseguiu decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que condena a Prefeitura a manter o auxílio-aluguel de todas as famílias e atender definitivamente: em 1 ano a prefeitura deve indicar o empreendimento habitacional para onde elas irão, e, no máximo em 4 anos, disponibilizar as unidades habitacionais para cada uma das famílias, sob pena de multa.
No caso do Zavuvus, a 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo declarou que a escassez de recursos públicos não pode servir de justificativa para os governos não honrarem os direitos fundamentais que dependem de suas políticas públicas e que a integridade dos direitos sociais e culturais justifica que o poder judiciário controle as ações dos outros dois poderes. Assim, a Prefeitura não pode manter as pessoas indefinidamente na fila do auxílio aluguel e suas políticas habitacionais devem garantir o direito fundamental ao atendimento habitacional, que está sendo violado.
A decisão também é importante porque se afasta da posição muitas vezes equivocada de desembargadores que entendem que o poder judiciário não deve interferir nas políticas dos poderes executivo e legislativo, nem gerar custos não previstos no orçamento destes poderes.
A falta de atendimento no Jardim Gaivotas
A segunda situação se refere às 30 famílias removidas em 2007, no Jardim Gaivotas, no extremo sul de São Paulo. Neste caso, a ação tinha como objetivo, garantir o atendimento habitacional às famílias que receberam o "parceria social" por um período e, em seguida, tiveram o benefício cortado pela Sehab (Secretaria Municipal de Habitação), sem nenhum tipo de atendimento provisório, porque a Prefeitura negou transferi-las para o auxílio-aluguel e sem qualquer compromisso com o atendimento definitivo.
Em 2007, essas famílias foram violentamente despejadas de suas casas pelo programa Defesa das Águas. A remoção ocorreu sem ordem judicial, amparada apenas em uma "Ordem Interna" da Prefeitura de São Paulo. Com muita luta, as famílias foram incluídas no programa de "Parceria Social", uma modalidade de atendimento habitacional provisório anterior ao "Auxílio-Aluguel" (atualmente em vigor), que pagava R$ 300 mensais para ajudar a custear a locação.
Esse atendimento durou 30 meses e, com muita mobilização dos atingidos, foi renovado por mais 30. Contudo, ao final desse prazo, em 2015, as famílias ficaram desamparadas; a Prefeitura se negou a transferi-las para o Auxílio-Aluguel e alegou que seu atendimento provisório pelo Parceria Social não estaria vinculado a nenhum tipo de atendimento definitivo.
Na ação, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos afirmou que essa postura violava a Resolução no° 64/2014, do Conselho Municipal Habitação, e, especialmente, o artigo 167, do Plano Diretor Estratégico de 2014, que determina que o atendimento provisório (em programas de apoio habitacional, como bolsa-aluguel, parceria social, ou por intermédio de indenização por benfeitorias, dentre outros) deve ser vinculado ao atendimento definitivo em programa de produção de Habitação de Interesse Social.
Assim, não basta apenas incluir as famílias no cadastro da COHAB, que não dá nenhuma garantia, mas é preciso realizar um atendimento transparente e efetivo. O juiz acolheu os pedidos e condenou a Prefeitura de São Paulo a fazer a inclusão das famílias no auxílio aluguel com a vinculação ao atendimento habitacional definitivo, a ser realizado pelos critérios da demanda fechada.
Outros decisões em favor da moradia digna
As decisões mencionadas acima impactam famílias que receberam alguma modalidade de atendimento habitacional provisório, como parceria social, cheque despejo, entre outros, e que devem ter o seu direito assegurado ao atendimento definitivo e, se estiverem em condição de vulnerabilidade, devem ter seu atendimento provisório continuado, recebendo o auxílio-aluguel.
Elas são importantes por reconhecerem abusos e ilegalidades da Prefeitura de São Paulo na gestão da política habitacional, que apresenta graves violações ao direito fundamental à moradia, com famílias removidas há muitos anos, aguardando na fila do auxílio-aluguel (cujo valor é insuficiente e há anos não tem sido reajustado), sem perspectiva nenhuma de receberem a unidade habitacional a que têm direito, tendo sistematicamente negado ou ameaçado de corte seu atendimento provisório e definitivo.
Também se somam a outras decisões importantes em favor da moradia digna que o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo conseguiram, assegurando o atendimento habitacional provisório e definitivo das famílias afetadas pela PPP Habitacional do Município (Lote 12, na região do Córrego do Bispo, zona norte de São Paulo) e pelo PIU Arco do Jurubatuba (na região da Vila Andrade). Nesses casos também, a Prefeitura de São Paulo desrespeitou os direitos das famílias, negando acesso às políticas públicas, à custa de direitos fundamentais.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
** Vitor Inglez é advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e mestrando na FAUUSP.
*** Benedito Barbosa é advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), integra a Central dos Movimentos Populares (CMP) e é doutorando na UFABC.
Edição: Rodrigo Durão Coelho