Na Praia de Jaguaribe, uma das onze orlas da Ilha pernambucana de Itamaracá, a inspiração da Rainha da Ciranda vem das águas.
“Eu me sento na praia, escrevo minhas músicas, a onda vem apaga, eu escrevo de novo, quando a onda vai, que volta, a música tá pronta”, revela Lia de Itamaracá, a mais célebre cirandeira do país.
Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, Lia recebeu o Bem Viver na TV, uma produção do Brasil de Fato, na Embaixada da Ciranda, uma casa simples e confortável, na orla da praia, que simboliza o carinho pela Ilha onde nasceu, e que a formou mestra.
Entre os temas da entrevista, estão a trajetória de Lia, a história da ciranda, e a resistência de manter e levar adiante a cultura popular em meio ao governo de Jair Bolsonaro (PL).
“Não tem nada perdido e nem desmanchado. Eu quero ver até onde é que Lia vai. Eu quero ver até onde eu posso chegar com esse sonho, com essa maravilha que é a música, com tudo que eu tenho vontade de fazer”, argumenta.
Lia e a ciranda
O mar de Lia, ou Maria Madalena Correia do Nascimento, também é guiado por outra rainha, a das águas, Iemanjá. “Ela me protege e não me despreza. Nunca me abandonou”.
Lia sempre viveu na Ilha, desde o nascimento, em 12 de janeiro de 1944. O início artístico, nas rodas de ciranda, se deu aos 12 anos de idade. Foi a única, dos 22 irmãos, a se dedicar à música.
“Com 19 para 20 anos, assumi a responsabilidade de gravar, e disso aí tudo, de sair para o exterior, para o sul do país, levando a música do nordeste”, relembra a cantora, que conquistou o país a partir de 1977, com o lançamento do LP Lia de Itamaracá – A rainha da ciranda.
Antes do sucesso, a ciranda não era muito conhecida, nem mesmo em Itamaracá. O fascínio popular na Ilha ficava mais a cargo de ritmos como o cavalo marinho, o coco de roda e o fandango.
A ciranda, na opinião dela, surge como uma forma de combater preconceitos, principalmente o racismo.
“A ciranda não tem preconceito. Dança preto, dança branco, dançam todos. Não sei porque existe esse preconceito tão besta, tão horroroso e tão sem sentido. Nós somos todos iguais”, analisa
Raízes na Ilha
A Embaixada da Ciranda, em Itamaracá (PE), é hoje um memorial permanente sobre a história de Lia, repleto de livros, fotografias, figurinos, e muitos desenhos infantis - que pelo destaque que ganha na entrada, se imagina que desperta em Lia profunda admiração.
O espaço também é um ponto de encontro para Lia observar o movimento da vizinhança, de onde se abastece com boas prosas. A mestra cultiva o hábito de caminhar pelas ruas para rever amizades, e comprar o próprio peixe nos ranchos e restaurantes de Jaguaribe.
“Eu não posso abandonar a minha ilha, porque é aqui onde eu me inspiro, é aqui onde eu nasci, é aqui onde estão minhas raízes, minha família, minha comunidade, está todo mundo aqui. Eu não posso abandonar a minha ilha de jeito nenhum. Eu vou, faço o meu showzinho fora e volto”.
Hoje, em Itamaracá, além da Embaixada, a cantora mantém um sonho maior: a criação do Centro Cultural Estrela de Lia. O projeto, que esbarra na falta de incentivo do poder público, visa promover apresentações e oficinas de ciranda, além de atividades pedagógicas para a comunidade.
“Tem quem procure um pedaço de pão e não acha”
Sua relação com as famílias do local não foi construída apenas por meio da música. Em paralelo à carreira artística, Lia era merendeira de uma escola estadual, onde trabalhou por quase três décadas.
Deste contato mais íntimo, foi percebendo os efeitos perversos da fome, realidade que se conecta com a história da própria família.
“Por onde eu ando, sento na mesa, vejo aquela prato de alimentação. Depois que eu me alimento, eu penso: ‘eu já me alimentei, mas será que minha família se alimentou?', questiona.
“Você está com a sua barriguinha cheia, mas tem que olhar se os outros se alimentaram também. Tem quem procure um pedaço de pão e não acha. É cruel”, completa.
A reflexão sobre a fome é interrompida quando lembra das famílias atingidas pelas chuvas na Região Metropolitana em Recife, que deixou 128 vítimas e milhares de desabrigados.
“Cada dia vem um dilúvio d'água, é família se perdendo. Não sei até onde vai chegar isso não. Já houve essas tempestades, mas não foi tanto assim. Muitas pessoas, crianças embaixo da terra, sem poder se movimentar. A gente sofre da mesma forma”.
“O que vai fazer esse povo sem nenhum capital? Sem condição de fazer nada. Perderam tudo. A vida, a família. Eles querem uma moradia digna. Se estão embaixo das barreiras é porque não têm para onde ir”, lamenta Lia.
Pandemia
Na pandemia, enquanto permanecia em isolamento, não parou de trabalhar: fazia vídeos, lives, fotos, e o que lhe fosse permitido. Mas admite a falta que sentia do contato mais próximo com os fãs.
“Quem é que não tinha saudade dos palcos? Todo mundo tinha, de estar no seu palco, na sua terra”, opina.
Com o avanço da vacinação, aos poucos, ela foi retomando a agenda de apresentações. O repertório mais recente está no disco Ciranda Sem Fim, construído em parceria com DJ Dolores.
O álbum, lançado em 2019, é uma viagem para além da ciranda, e também se aprofunda na cultura pop. Nele, a rainha canta boleros e cúbicas, populares em outros países da América Latina, como a Colômbia.
A obra é uma constatação de que Lia, aos 78 anos, continua a se reinventar.
“Aonde eu vou o público é dez. Se for para o teatro, o teatro está cheio, é casa lotada. Eu sou povão. As crianças, adultos, pescadores, tudo adora o meu trabalho”, conta.
Mestres da cultura popular
Mas apesar da animação, ela ainda teme os efeitos do vírus que se espalhou pelo mundo. “Eu me preparo para não pegar esse vírus, porque é muito horroroso ele e quanto mais vacinar melhor”, desabafa.
Em relação aos mestres da cultura popular, Lia lamenta a falta de incentivo, principalmente com a paralisação dos eventos durante a pandemia.
“Para esses mestres que têm famílias, que têm crianças em cama de hospital, sem ter um auxílio digno para levantar essa família. Como é que a nação pode chegar a essa família?
“Tem um monte de cirandeiras em Recife. Muitas. E eu venho carregando isso tudinho comigo, incentivando elas”, completa
Lia recebeu o título de Cidadã Paulistana na Câmara de São Paulo, em projeto de honraria apresentado pela Mandata Coletiva Quilombo Periférico. / Pedro Stropasolas
Atuação política
Recentemente, Lia recebeu o título de Cidadã Paulistana. O projeto de honraria aprovado na Câmara de Vereadores de São Paulo foi uma iniciativa do mandato coletivo Quilombo Periférico.
Referência e símbolo de luta para outras mulheres, a cantora organiza “a grande ciranda” da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, que acontece anualmente na Paraíba, no dia 8 de março.
O evento, que ocorre na região de Borborema (PB), reúne agricultores e agricultoras de todo o Nordeste, para denunciar as violações de direitos humanos e violências promovidas contra as camponesas.
Em junho, Lia também foi uma das artistas a se apresentar na primeira edição da Feira Nordestina da Agricultura Familiar e Economia Solidária, que reuniu mais de 1.200 agricultores e agricultoras nordestinas, em Natal (RN).
Outras Lias
O posicionamento político e a forma de se relacionar com o mundo também é construído em outras áreas, como no cinema. “Eu não sou só uma cirandeira. Eu sou uma intérprete também. Sou uma atriz. Tenho vários filmes que participei”, comenta.
A lista de filmes é mesmo extensa: Paraíba, Mulher Macho; Riacho Doce; Recife Frio; Sangue Azul; e a atuação que Lia lembra com mais afeição, a de Dona Carmelita, em Bacurau, de Kléber Mendonça Filho.
“Gostei, amei. E ainda estou com Bacurau na cabeça, ele só não faz voar”, relembra a cantora.
A dedicação aos outros universos faz do sonho de Lia algo contínuo, que não se restringe às conquistas que a música proporcionou. É algo maior: vai no caminho da luta por um mundo mais inclusivo, brincante, e solidário.
“Daqui para frente, os mestres da cultura não devem se curvar. Devem levantar a cabeça, levantar a bandeira e gritar: eu sou mestre, e vou adquirir o que eu quero. Eu não me curvo, eu não paro, eu grito, eu amo o que eu faço”, finaliza a cantora.
Edição: Rodrigo Durão Coelho