Indústria tenta frear políticas de alimentação saudável e interfere na saúde da população
Apesar de ter um Guia Alimentar para População Brasileira, que é uma referência em recomendações para alimentação saudável, o país patina na efetivação e melhoria das políticas de alimentação e na prevenção de doenças crônicas devido a uma série de conflitos de interesses. Por exemplo, 86% dos autores que criticam a classificação dos ultraprocessados possuem relação com a indústria que fabrica e comercializa esse tipo de produto.
“Todo processo de formulação, discussão, implementação e até de fiscalização de políticas públicas de alimentação e nutrição no Brasil é influenciado pela indústria de alimentos, bebidas, e pelo agronegócio", explica Laís Amaral, especialista do Programa de Alimentos do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Idec.
"Essas empresas atuam de duas formas principais: com ações e táticas e narrativas e discursos. Tudo isso para tentar barrar e frear as políticas de alimentação adequada e saudável, e isso acaba interferindo na saúde e como a população se alimenta”, acrescenta.
Amaral enfatiza que, para disseminar a sua narrativa, a indústria estabelece uma relação estreita com profissionais e instituições de saúde, a mídia, financiamento de pesquisas e eventos científicos. Dos artigos que apresentaram envolvimento da indústria, 55,6% mostraram resultados favoráveis aos interesses das empresas contra 9,7% dos artigos que não contém envolvimento com a indústria.
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A indústria interfere de forma direta ou indiretamente nas políticas também com lobby e financiamentos de partidos e políticos e em processos regulatórios. Amaral também é membro da Comunidade de Prática América Latina e Caribe de Nutrição e Saúde (Colansa).
Segundo a especialista do Idec, há interferência em eventos científicos de diversas áreas de saúde. Além disso, ela diz que é frequente stands de divulgação de produtos da indústria e de empresas patrocinadoras desses eventos, até a interferência na programação científica do congresso com porta-voz das indústrias nas palestras.
“É interessante destacar um caso específico que é o Congresso Brasileiro de Nutrição, que é o Conbran. Já faz alguns anos que a gente já tem um congresso livre de interesse, então não recebe patrocínio, nem de financiamento de indústria de produtos e bebidas ultraprocessados, por exemplo. Isso é bastante importante para que a gente tenha um congresso de evidências científicas e de divulgação de informações sem conflitos de interesse”.
Só no Brasil, a indústria de ultraprocessados fatura em média R$ 700 bilhões por ano. Há uma série de evidências que comprovam a relação do consumo de ultraprocessados com doenças crônicas, inclusive no Guia Alimentar para População Brasileira, publicado em 2014 é um documento inovador e reconhecido no mundo todo.
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Segundo Amaral, em 2020, por conta de recomendações de evitar o consumo dos ultraprocessados, a indústria de alimentos fez um movimento na tentativa de derrubar o Guia e piorá-lo, mas também houve uma resposta da sociedade civil e de pesquisadores mostrando evidências de que existia conflito de interesse na mudança.
“Em 2020, teve um episódio importante que foi uma nota técnica do Ministério da Agricultura que falava sobre a necessidade de revisão do Guia Alimentar e as justificativas de que o uso do termo ultraprocessados era incorreto. Por trás dessa nota técnica, houve diversas manifestações de associações de indústrias de alimentos falando sobre que a nota era boa e que a revisão do guia era importante”.
O Guia resistiu e continua sendo disseminado e aplicado por diversos profissionais da área de saúde. Neste ano, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) lançou um documento de prevenção e gestão de conflitos de interesse em programas de nutrição no âmbito nacional, um roteiro de implementação do projeto de abordagem pelos governos.
Edição: Douglas Matos