Memórias chavistas

Coronel que conheceu Chávez em 1986 passou a última década na guarda do túmulo do ex-presidente

'Eu sempre soube que ele seria presidente', afirma Castro; se estivesse vivo, Chávez faria 68 anos nesta quinta-feira

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
"Estou enterrado aqui, plantado ao lado do comandante Chávez", diz o coronel Castro - Lucas Estanislau

O sol ardente que se abre ao meio-dia sobre o alto morro do 23 de Enero, bairro periférico de Caracas, não parece incomodar em nada o coronel. Devidamente fardado com mangas longas, botas de cano alto e um lenço vermelho no pescoço, ele destoa dos demais que, com roupas de verão, se esgueiram pelas paredes em busca de uma sombra. "Eu procuro me cuidar, sabe? Faço exercícios físicos todos os dias e só me alimento de coisas saudáveis, cereais e frutas", diz orgulhoso. Mas a prática no desempenho da função também faz com que o militar tenha essa resistência. Dos seus 58 anos de idade, Roberto José Castro passou os últimos 40 servindo as Forças Armadas e há quase uma década é o principal responsável pela guarda do Quartel da Montanha 4F, o mausoléu onde está enterrado o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez.

Pelos corredores da antiga base militar construída no início do século XX e que desde 2013 funciona como túmulo e memorial do ex-mandatário venezuelano, o coronel Castro caminha a passos lentos, porém firmes, inspecionando os espaços, cumprimentando os visitantes e fazendo recomendações a outros funcionários. Seria como se estivesse em casa se o lugar não fosse, de fato, seu lar. "Estou enterrado aqui ‘compadre’, plantado ao lado do comandante Chávez, vivendo todos os meus dias aqui e não importa o que venha, seja pandemia ou outras coisas, seguimos firmes", garante.

Nesta quinta-feira (28), data em que Chávez completaria 68 anos se estivesse vivo, não será diferente. Quem visitar o quartel para participar das atividades em celebração ao aniversário do ex-presidente será recebido por Castro para “conhecer o legado do comandante a nível nacional e mundial", segundo suas próprias palavras.

As histórias do coronel se confundem com a história de Chávez, na medida em que ele narra os episódios mais importantes de sua vida pessoal e militar sempre em sintonia com acontecimentos históricos protagonizados pelo ex-presidente ou fatos particulares que viveu ao seu lado.

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“Eu acompanhei meu comandante por todas as partes. Estive na China, na Índia, na França, na Itália, no Brasil, em Nova York. Caminhei pela ‘grande maçã' e me perdi, fui parar em um museu de cera chamado Madame não sei das quantas”, conta o militar venezuelano, em referência ao Madame Tussauds, localizado no 42ª avenida de Manhattan, próximo à Times Square.

Durante os 14 anos em que Chávez ocupou a presidência da Venezuela, Castro fez parte da sua equipe de segurança pessoal e foi nesse período que viajou a diversos países com a comitiva do mandatário em visitas oficiais. Dos lugares por onde passou, o coronel se lembra com mais empolgação de sua aventura em solo nova-iorquino no ano de 2006, quando acompanhou o presidente venezuelano em uma de suas mais icônicas intervenções na Assembleia Geral da ONU.

“Ontem o diabo esteve aqui! Neste mesmo lugar ainda tem cheiro de enxofre”, diz o coronel, com os indicadores levantados, citando de cor as palavras de Chávez em referência ao então presidente dos EUA George W. Bush. “Eu assisti a esse discurso de perto e foi uma verdadeira comoção”.

Castro mal havia se graduado na escola militar quando conheceu o então capitão do Exército Hugo Chávez, em 1986. Com apenas 22 anos de idade, ele havia sido deslocado a uma pequena ilha no estado de Zulia para combater focos guerrilheiros vindos da Colômbia que operavam em território venezuelano. “Após três dias de combate intenso, nossas forças saíram vitoriosas sem nenhuma baixa”, conta. Ao saber que a região havia sido liberada pelos soldados, o futuro presidente venezuelano, acompanhado de outros oficiais, visitou o local para conversar com as tropas.

Anos depois, quando Castro ascendeu ao posto de coronel, Chávez relembraria a façanha vivida pelo pelotão do qual Castro fazia parte e classificou o colega militar como uma “lenda”. “Foi uma emoção muito grande para mim, porque ele reconheceu minha trajetória de luta e lembrou de quando não nos mataram na ilha, mesmo sabendo que nós estávamos no começo de nossas carreiras”, afirma.


Castro acompanhou Chávez em diversas viagens internacionais / Lucas Estanislau

A construção da figura política

Em 1992, Chávez irrompe no cenário político nacional e se converte, da noite para o dia, em uma figura extremamente popular. No dia 4 de fevereiro daquele ano, data que hoje dá nome ao quartel onde o ex-presidente está enterrado, o então capitão liderou uma tentativa frustrada de rebelião militar, organizada pelo Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200), que tinha o objetivo de derrubar o governo do presidente Carlos Andrés Pérez. Segundo os oficiais insurgentes, as políticas de corte neoliberal e a repressão contra protestos populares que tomaram as ruas da capital dois anos antes, em 1989, no episódio que passou para a história como Caracazo, justificariam a necessidade de uma mudança de regime.

Fracassado o levante, as lideranças do movimento foram presas, incluindo Chávez. Antes de ser detido, entretanto, o capitão teve a oportunidade de falar à imprensa, em mensagem transmitida em rede nacional na qual assumia a responsabilidade pela rebelião, mas deixava o futuro do movimento em aberto: “Companheiros, lamentavelmente, por agora, os objetivos que propusemos não foram alcançados na cidade capital. [...] Já é tempo de evitar mais derramamento de sangue, já é tempo de refletir e virão novas situações e o país deve rumar definitivamente a um destino melhor".

“Eu me arrepio, ‘compadre’, de verdade”, confessa Castro ao repetir, mais uma vez de cor, as palavras de Chávez. Àquela altura, liderando o batalhão de paraquedistas Nicolás Briceño número 42, o coronel acompanhava o desenrolar do levante mobilizado com outros soldados que apoiavam o movimento. Ao assistir, junto com milhões de venezuelanos, as declarações do então militar rebelde que acabava de ser preso, Castro não enxergava derrota.

“Quando vi Chávez ser preso eu sabia que ele se tornaria presidente. Aquele ‘por agora’, aquelas palavras retumbaram nos quatro cantos do país, porque o povo queria uma mudança estrutural. De uma maneira ou de outra, eu sempre soube que ele seria o líder da Venezuela”, diz o coronel.

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Essa certeza foi o bastante para que, em 1997, Castro se filiasse ao Movimento Quinta República (MVR), partido político criado por Chávez após sua saída da prisão. A rebelião de 1992 havia conquistado a simpatia de muitos venezuelanos, principalmente das camadas mais pobres do país, fator que levou os ex-rebeldes a passarem à institucionalidade e se apresentarem como alternativa eleitoral. Com a proposta de convocação de uma Assembleia Constituinte que refundaria a República, o movimento e seu candidato, Hugo Chávez, venceram as eleições presidenciais de 1998. Um ano depois, uma nova Constituição foi aprovada na Venezuela.

Desse período, o coronel se recorda dos grandes atos de campanha pelas ruas do país, da simpatia com que a população via a figura de Chávez e acredita que a força que tiveram nas urnas representou a continuação do movimento rebelde do 4 de fevereiro. 


Quartel da Montanha 4F serve como mausoléu de Chávez / Wikicommons

2002: a tentativa de um golpe fracassado

“Quem para o furacão revolucionário que é o povo?”, questiona Castro, relembrando que esse apoio foi testado e comprovado quatro anos após a vitória eleitoral de Chávez, quando o presidente foi derrubado, ainda que apenas por três dias, por um golpe de Estado no ano de 2002. “Aquilo foi uma conspiração organizada por militares entreguistas e pelos Estados Unidos. Tiraram o comandante Chávez do Palácio Miraflores sem disparar um tiro, mas não puderam segurar a gente que desceu dos morros e dos bairros para defender o presidente”, explica o coronel. 

Entre os dias 11, 12 e 13 de abril de 2002, militares do alto comando do Exército, apoiados por diversos partidos de oposição, sequestraram o então mandatário e o prenderam, com a intenção de tomar o poder. Os meios de comunicação que apoiaram o golpe passaram a veicular a versão de que Chávez havia renunciado. Como as emissoras de televisão, rádio e jornais legalistas haviam sido tomados pelas forças golpistas, o governo não teve meios para denunciar o golpe. Pedro Carmona Estanga, então presidente da maior entidade empresarial do país, a Fedecámaras, chegou a se autoproclamar presidente interino e, apoiado pelos golpistas e reconhecido pelos EUA, determinou o fechamento dos demais Poderes e a anulação da Constituição de 1999.

Uma multidão de apoiadores chavistas manteve o Palácio de Miraflores, sede presidencial da Venezuela, cercado durante a intentona. Foi apenas quando um grupo de militares leais a Chávez decidiu reagir que os governistas conseguiram retomar o edifício, ato que culminou com o retorno do presidente. “As pessoas foram às ruas gritando: ‘Queremos ver Chávez! Queremos ver Chávez!’. Nesse dia eu conheci a fúria de um povo, eles estavam armados de paus e pedras e foi isso que afugentou os golpistas”, alega o coronel. 

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Durante o golpe, Castro conta que ficou "entrincheirado"  em La Casona, a residência oficial do presidente, ao lado da esposa e das filhas do mandatário. “Eu estava armado de uma submetralhadora, duas granadas e a certeza de defender aquela residência a sangue e fogo”, destaca.

Com a derrota dos golpistas, Chávez e seu movimento bolivariano adquirem ainda mais força política e eleitoral, saindo vitoriosos de várias eleições presidenciais, legislativas e referendos que aprovaram mudanças ainda mais radicais no país. O ex-mandatário passou a investir de forma ampla nas chamadas “missões sociais”, uma rede de políticas públicas que, além de combater déficits nas áreas da saúde, moradia e educação, funcionam como um instrumento de formação política e social.

Os mandatos do ex-presidente também ficaram marcados pelos esforços de integração regional na América Latina, com mecanismos como a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e a Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), dos quais Chávez era um ferrenho defensor.

“Aqui, no bosque das bandeiras, está representado o sonho bolivariano e integracionista do comandante Chávez”, diz Castro, apontando para a longa fila de flâmulas dos países latino-americanos que ficam hasteadas em frente ao Quartel da Montanha 4F. “Esse foi o maior legado que ele nos deixou”.


Coronel Castro e o bosque das bandeiras do Quartel da Montanha / Lucas Estanislau

Para falar do ano de 2013, o coronel diminui o tom da voz, baixa os olhos e cruza as mãos para trás. Foi naquele ano, no dia 5 de março, que Chávez faleceu, debilitado por um câncer que o acompanhava desde 2011. Entre muitas idas a Cuba para tratamentos e cirurgias, o ex-presidente ainda teve tempo de concorrer e vencer, em 2012, mais uma eleição presidencial. Com a morte do mandatário antes da posse, o país foi às urnas de novo para eleger pela primeira vez o atual presidente, Nicolás Maduro.

Castro volta a citar Chávez de cor, dessa vez relembrando o último pronunciamento do mandatário em rede nacional. “Minha opinião firme, plena como a lua cheia, irrevogável, absoluta, total é que vocês elejam Nicolás Maduro como presidente da Venezuela”. “Quando soube da notícia, no dia 5 de março, não consegui segurar as lágrimas. Aquilo foi um golpe duro em todo o país, houve uma mudança de clima que afetou a todos nós”, relembra.

Após nove dias de funeral, o corpo de Chávez foi levado em cortejo até o Quartel da Montanha 4F. Terminadas as homenagens e o enterro, as lideranças do governo e os militares de alto escalão que acompanhavam a cerimônia se foram, mas Castro não. “Eu estou aqui cumprindo um dever patriótico e uma obrigação pessoal, desde o primeiro tiro de canhão que disparamos todos os dias, às 16h25, para marcar o horário em que faleceu o comandante”, diz.

Quando o sol se põe, a temperatura fica mais agradável no quartel. O coronel diz que quase todas as noites o local fica coberto por uma fina neblina que aos poucos vai encobrindo as milhares de casas que se esparramam morro abaixo, pelo 23 de Enero. “Mas eu não gosto dessa hora, sabe? Eu prefiro o dia, o sol, quando isso aqui está cheio de gente querendo conhecer o legado de Chávez. Que venha o povo”, confessa.

Edição: Arturo Hartmann