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“Apartheid alimentar é resultado de um legado de políticas discriminatórias”, diz pesquisadora

Um estudo realizado em Campinas aponta ultraprocessados estão mais disponíveis em bairros de baixa renda

Um mapeamento realizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp (NEPA) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens) investigou a distribuição de estabelecimentos que comercializam alimentos e a identificação de regiões que podem ser consideradas pântanos alimentares em Campinas, interior paulista. 

Antes de explicar os pântanos é preciso compreender os desertos alimentares que são regiões em que as pessoas precisam se deslocar muito para conseguir comprar alimentos in natura ou minimamente processados a preços acessíveis. Já os pântanos alimentares são regiões também vulneráveis, mas que têm a predominância de estabelecimentos que comercializam ultraprocessados em detrimentos dos alimentos saudáveis.  

Uma das pesquisadoras do estudo Mariana Fagundes Grilo explica que esses conceitos “deserto alimentar” e “pântano alimentar” ajudam a identificar um potencial apartheid alimentar ou food apartheid nos centros urbanos. 

“O apartheid ressalta as desigualdades no acesso aos alimentos como um sintoma da presença de injustiça sociais como, pobreza e racismo que levam a alocação desigual de recursos. O termo “apartheid alimentar” dá uma noção melhor de que as barreiras do acesso a alimentação saudável não é pela falta de iniciativa de uma comunidade, mas por um legado contínuo de estruturas econômicas e políticas que são discriminatórias ”.  

A cientista afirma que ao avaliar a distribuição geográfica de estabelecimentos que comercializam alimentos em Campinas foram encontradas evidências de desigualdade na distribuição.  Campinas é a terceira maior cidade do estado de São Paulo e tem cinco regiões classificadas como pântanos alimentares. 

“Das ‘18 administrações regionais do município cinco foram consideradas pântanos alimentares ou seja, regiões vulneráveis com baixa renda, com maior concentração de pretos e pardos e que apresenta uma maior oferta de alimentos ultraprocessados como refrigerantes, bolachas, salgadinhos e baixa oferta de alimentos in natura e minimamente ultraprocessados como verduras, frutas, feijão e arroz”, essa é uma das conclusões do estudo relatadas por Mariana que trabalha no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp.  

Foram avaliados três tipos de estabelecimentos: restaurantes de comida rápida, feiras livres e orgânicas/agroecológicas e super/hipermercados (estabelecimentos de venda mista). No artigo divulgado na revista Ciência & Saúde Coletiva as pesquisadoras ressaltam que as evidências sugerem que os pântanos alimentares podem desempenhar um papel ainda mais relevante do que os desertos alimentares na contribuição para o aumento das prevalências de obesidade e diabetes e das iniquidades de saúde. 

::Quais as interferências da indústria nas políticas de alimentação saudável no Brasil?::

Dessa forma, os pântanos alimentares atuam como um fator de risco para má nutrição e doenças crônicas não transmissíveis. No Brasil, em domicílios com baixa renda, a insegurança alimentar e nutricional é ainda mais agravada entre os domicílios chefiados por mulheres e com residentes negros.

De acordo com Mariana, essas regiões consideradas de pântanos alimentares devem ser priorizadas em políticas públicas e intervenções locais que visam a equidade de distribuição desses alimentos. E que a situação de Campinas serve para compreender o que acontece em outras cidades. 

“Os nossos resultados se revelaram semelhantes a outros estudos de ambiente alimentar em São Paulo, Jundiaí, Belo Horizonte e Juiz de Fora que mostraram que, de forma geral, em bairros mais ricos há uma maior densidade de estabelecimentos que comercializam alimentos in natura e minimamente processados em relação a regiões mais vulneráveis”. 


Thiago Vinicius criou a iniciativa Organicamente Rango, armazém e restaurante de alimentos orgânicos / Thiago Vinicius

Segundo Thiago Vinicius da Agência Popular Solano Trindade, morador do Campo Limpo, periferia da zona sul de São Paulo, o acesso aos alimentos saudáveis tem a ver com resgatar o histórico da cultura alimentar dessas famílias. 

“O corpo da periferia não é um corpo que só trabalha, não é um corpo que está na cidade só para servir.  É um corpo de direitos, que quer comida gostosa, qualidade de vida, a gente se ligou nisso na medida que pesquisamos a nossa história e vimos que o nosso povo que hoje tem pouco acesso a comida [saudável] por uma questão social e econômica, mas antes comiam orgânico, aqui era um lugar de roças”. 

::Hora do recreio: o que é comercializado nas cantinas e lanchonetes das escolas?::

Motivado pelo nascimento da filha Maria Flor, Thiago quis que ela crescesse com bons hábitos alimentares e também com acesso a alimentos saudável, foi aí que nasceu o Organicamente Rango, restaurante e armazém de comida orgânica na Vila Pirajussara

“Todas as visões de fora para dentro viam a iniciativa como inovação, mas para nós tínhamos clareza que não estávamos inovando. A gente só estava reconectando o nosso povo com uma comida ancestral. A minha mãe, periférica e negra, ela sabe o que é o coração da banana, quem não sabe o que é um coração da banana é quem mora na rua Harmonia que precisa da minha mãe como empregada doméstica para poder falar não joga fora, e faz o uso integral desse alimento”. 

O estudo ressaltou ainda que promover hábitos alimentares saudáveis, requer uma combinação de estratégias de vários níveis, incluindo melhorar o ambiente alimentar local, que pode ser realizado pela restrição de estabelecimentos que comercializam essencialmente alimentos ultraprocessados em áreas próximas a escolas, por exemplo e pelo aumento do número de feiras livres e orgânicas/agroecológicas. 

 

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