Se a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, pode ser essa a medida da diferença entre medicamentos e substâncias recreativas que, muitas vezes, compartilham o mesmo nome: drogas.
Ao longo dos anos, o vocábulo passou a ganhar uma série de conotações negativas, mas esses preconceitos estão sendo revisitados – sobretudo nos Estados Unidos. A administração de Joe Biden - mais especificamente as agências ligadas ao Departamento de Saúde - publicou, há poucos dias, uma carta que abre caminho para a legalização de psicodélicos em ambientes terapêuticos.
De acordo com o documento, o MDMA e a psilocibina (composto psicoativo de cogumelos) podem se tornar ferramentas importantes de psicólogos e psiquiatras no combate ao transtorno pós-traumático e à depressão.
O sinal verde da Casa Branca chega a poucos meses da eleições locais em novembro, quando, na Costa Oeste, os californianos irão às urnas escolher seu novo governador. Ao mesmo tempo, manifestarão seus interesses, em uma espécie de referendo, em relação a outras pautas, como a legalização do "cogumelo mágico", que ficaria disponível também para uso recreativo.
Uma série de pesquisas servem como base para a defesa dessas iniciativas, como explicou ao Brasil de Fato a psicóloga e doutoranda Anna Nelson, que tem estudado o impacto de psicodélicos em ambientes clínicos. "Há estudos que confirmam a eficácia dos psicodélicos para uma série de transtornos mentais, que vão desde comportamento compulsivo, abuso de substâncias, ansiedade e outros", disse.
Apesar do avanço cientificamente comprovado, o tema é geralmente sufocado por questões morais e religiosas, que fomentam as narrativas preconceituosas e pejorativas de certas substâncias. A letargia na aprovação do uso terapêutico dessas drogas tem a ver com isso – mas isso não significa que seja ruim.
"Acho que é importante ir devagar, já que mais estudos precisam ser feitos", defende Anna. Segundo a psicóloga, o uso clínico de psicodélicos não é indicado para todos os casos, nem para todos os pacientes.
Ela conta ainda que, no ambiente terapêutico, as drogas são administradas por pelo menos um profissional capacitado, que não está sob o efeito de nenhuma substância, e que o paciente em questão pode ser estimulado com o uso de músicas.
Especializada na terapia convencional, que envolve o diálogo com o paciente, Anna explica que o uso de psicodélicos seria um complemento – e não uma substituição. "Sob as substâncias, as pessoas relatam importantes processos internos. É como se, em vez de induzir algo, através da fala, a pessoa, com ajuda do psicodélico, já vivesse o que precisa trabalhar em sua mente", afirma.
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Outros países também discutem os benefícios clínicos das drogas, e balizam os parâmetros para legalizá-las. Um dos maiores receios em aprovar essas medidas não tem a ver necessariamente com o seu uso, mas com o seu abuso.
Tendo a história recente como prova, vale recorrer à maconha como estudo de caso. O uso recreativo da cannabis foi aprovado na Califórnia há seis anos. Hoje, a maconha é legalizada em 15 estados do país mais a capital. Outros 21 estados também permitem o uso de maconha para fins médicos.
Em todos os casos, não há nenhuma evidência que associe a legalização da droga, mesmo para fins recreativos, com o aumento de consumo, segundo dados da National Academy of Sciences.
Quando se trata de uso por jovens, vários relatórios recentes descobriram que, na maioria dos estados que aprovaram a maconha medicinal, o uso entre adolescentes diminuiu.
Especialistas dizem que isso se deve ao fim do “fruto proibido”: agora que a droga está disponível e é possível tê-la, já não é mais tão excitante ou arriscado. Também entra em uma dinâmica de acesso dificultado porque a maconha, por exemplo, saiu das ruas, não-regulamentadas, e passou a ser vendida em estabelecimentos que cumprem regras e impõe limites etários, por exemplo.
Com os psicodélicos, o caminho deve ser o mesmo – logo o país deve propor um conjunto de regras para definir quem, como, onde e quanto o consumo desses ativos pode ocorrer.
Edição: Arturo Hartmann