O adolescente Emmett Till, de Chicago, visitava parentes em Mississipi, quando uma mulher o acusou de "assédio". Na versão da mulher, branca, o garoto – que era negro –, teria assobiado em sua direção. Till foi então sequestrado, agredido e brutalmente assassinado, tendo o corpo jogado em um rio e afundado por um ventilador de metal que fora amarrado em seu pescoço.
Dois homens foram presos em decorrência deste assassinato, mas foram absolvidos por um júri composto apenas por homens brancos. No funeral de Till, sua mãe, Mami Till, insistiu em deixar o caixão aberto, para expor publicamente a violência infligida ao filho.
Esse caso trágico da história dos EUA aconteceu em 1955, mas a justiça para Till e sua família chegou só em 2022, quando Joe Biden finalmente assinou a lei que torna linchamento um crime federal de ódio.
"Foram quase 120 anos de espera", contou ao Brasil de Fato o escritor e historiador Philip Dray, autor de diversos livros sobre o tema.
Segundo ele, essa demora em tipificar o linchamento como crime não é um mero acaso – e há fortes componentes raciais nisso. "O número de linchamentos nos EUA, começando por volta da década de 1880, 1890, era de quase um a cada dois dias, basicamente de afro-americanos. Era o que eles chamavam de Flagelo do Sul", diz.
A referência geográfica desses atos de violência segue a rota da escravidão – e do preconceito. Os estados ao sul do país são os que mais abusaram do regime escravocrata, e os que lutaram contra o fim da lei de segregação racial. Não chega a ser surpresa, portanto, que Till tenha sido assassinado justamente em um desses estados, e que esses tenham sido os estados a se oporem à criminalização do linchamento.
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Embora caia sobre o guarda-chuva de crimes de ódio, Dray explica que há uma diferença importante a ser estabelecida. "Linchamento é quando duas ou mais pessoas decidem fazer justiça com as próprias mãos, desafiando, portanto, o curso legal de um processo. Um crime de ódio, muitas vezes, pode ser 'aleatório', motivado por religião ou raça. No linchamento, é algo premeditado, que pode ou não estar ligado a outros preconceitos", diz.
Atos bárbaros como esse não aconteciam no silêncio da noite, como relembra o escritor. "Havia o chamado linchamento-espetáculo, cometido à luz do dia, diante de milhares de pessoas". Fazer dessa violência um verdadeiro "show" era uma forma de promover certos ideais de superioridade de raça, sexo e de impor outras normas sociais.
Segundo um relatório da Equal Justice Initiative (EJI), uma organização sem fins lucrativos com sede no Alabama dedicada ao combate à desigualdade racial, linchamentos de caráter racial matou quase 2 mil homens, mulheres e crianças negros durante a era da Reconstrução, de 1865 a 1876.
Em 2015, pesquisadores do EJI divulgaram um outro documento, contando mais de 4,4 mil linchamentos entre 1877 e 1950. Mais recentemente, um novo estudo, intitulado "Reconstruction in America: Racial Violence After the Civil War" (Reconstrução na América: Violência Racial depois da Guerra Civil), eleva o número total de mortos por linchamentos entre 1865 e 1950 para quase 6,5 mil.
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Antes de Joe Biden assinar o projeto de lei que criminaliza o linchamento, acusados desta prática bárbara eram penalizados por outros crimes, como homicídio doloso. Agora, sob as novas diretrizes, acusados de linchamento podem pegar até 30 anos de prisão. "É uma vitória simbólica, porque a pena em si não necessariamente será mais severa, mas ela terá um nome – e um peso – diferente. Foi uma espera de mais de um século", comemora o pesquisador.
Ainda segundo Dray, essa adição ao código penal estadunidense é um reflexo direto da pressão popular, que se arrasta há anos na força do movimento Black Lives Matter. "Acho que durante a pandemia, as pessoas chegaram ao seu limite porque uma grande quantidade de vídeos e denúncias começaram a circular. Tivemos o escândalo sobre o aluguel de homens negros e de casos como o de Brianna Taylor".
Citando ainda outros casos, como o de George Floyd, que levou uma multidão às ruas, Dray explica que a criminalização do linchamento é um primeiro passo, mas que ainda há muito a ser feito: "quando o assunto é justiça social e racial, ainda estamos em dívida com a nossa prestação de contas nacional".
Edição: Arturo Hartmann