Ali vão eles numa carroça pequena de dois lugares sob um sol escaldante, numa região árida e seca, em direção ao palácio recebido do pai e sogro como presente de casamento. Assim começa o filme italiano Il Pataffio, parte da competição internacional do Festival de Locarno, com direção e cenário de Francesco Lagi, com seus personagens tontos, sujos e maldosos. A recém-casada, um tanto gorda, ocupa todo o espaço, transpira e tem fome, enquanto seu marido, de origem plebeia, ansioso por chegar, desfruta do prazer de se sentir importante com seus soldados e sua pequena e ridícula comitiva.
Cúmulo do azar, ao chegarem ao palácio, onde não lhes abrem a porta para entrarem, descobrem terem se enganado de endereço. Estamos no interior da Itália, em plena Idade Média, e o pequeno grupo, cansado e com um casamento para ser consumado numa boa cama, pede um pernoite por gentileza, como se costumava fazer entre os nobres.
Entretanto, isso lhes é negado e o marconde Berlocchio, o marido, considera a indelicadeza uma afronta, agravada com palavras de baixo calão, gritadas contra eles pela castelã do alto da muralha. Desejoso de assumir rapidamente sua nova categoria de varão nobilizado pelo sogro, o marconde se infla como um pavão e decide atacar os detratores com sua pequena dúzia de soldados em final de carreira.
"Atacar o palácio", ordena, enquanto os soldados procuram encontrar uma escada, que logo se revela curta demais para chegar ao alto do paredão de pedras do palácio. "Que fazemos?", perguntam, diante do obstáculo e sem equipamentos para a escalada. "Subam agarrando-se com as unhas e as mãos", ordena o novo nobre contente de poder exercer seu poder. Não dá certo, um primeiro soldado se esborracha. A situação logo se agrava com uma chuva de pedras, lançada pelos soldados adversários. É preciso fazer meia-volta e continuar com a pequena comitiva extenuada até chegar ao destino.
Mas o palácio é um verdadeiro lixo, com galinhas, cabras e mesmo uma vaca nos aposentos nobres, sem câmara nupcial para Berlocchio poder deflorar sua virgem e impaciente esposa Bernarda, cujos sonhos eróticos lhe colocam em conflito com a obrigação de pureza mesmo nos pensamentos, exigida pela santa Igreja.
Esse é só o início deste bom filme do Festival, cuja sequência ridiculariza a igreja, mostra a empáfia e incompetência do marconde, enquanto o libidinoso padre da caravana, ao tomar a confissão dos pecados de Bernarda, aproveita também para lhe tomar a virgindade. Por demais ansiosa e ardente com as cavalgadas do padre sobre seu corpo, Bernarda goza e entrega sua alma ao criador.
Um dos invasores do palácio, que ali habitavam clandestinamente de maneira precária, conseguiu reuni-los para expulsar o marconde e seus soldados, numa espécie de revolta local. Porém, o marconde conseguiu convencer o líder a trair seus seguidores, como se costuma fazer na boa política. Mesmo assim o arranjo falhou, pois o líder dos pobres aldeões morreu de tanto comer no jantar, a ele oferecido sem talheres e sem guardanapos, com as últimas galinhas caçadas nos arredores.
O filme é baseado no livro "Il Pataffio", de Luigi Malerba, sobre os tempos medievais de fome, sujeira, gula, anarquia e crendices católicas.
*O jornalista Rui Martins está no Festival Internacional de Cinema de Locarno, um dos mais importantes e antigos do mundo, ocorrendo anualmente desde 1946.
Edição: Nicolau Soares