Precisamos despertar para esse conjunto de lutar e construir uma política pública
Extensão ou comunicação? A pergunta-reflexão feita por Paulo Freire na década de 1960 sugere mais que processos em campo para um agrônomo-educador. O princípio do poder da palavra na construção do conhecimento, para cerca de 100 famílias do território do Potengi, no Rio Grande do Norte, propõe um passo a mais nas políticas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater).
O projeto-piloto Mãos na Terra do Potengi defende uma governança sindical para a plena autonomia dos saberes populares. A iniciativa está sendo desenvolvida em 11 municípios com atuação da Cooperativa da Agricultura Familiar da Região Potengi (CoopPotengi), que que integra a União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) do Rio Grande do Norte. O projeto tem ainda a parceria da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Rio Grande do Norte (Fetraf-RN).
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A agricultora Cícera Franco está na coordenação do projeto Mãos na Terra do Potengi e destaca a importância da execução de políticas para o campo pelo sindicalismo. Para ela, o conjunto de lutas e proposições populares não deve se separar da autonomia da governança feita exclusivamente por sindicalistas e agricultores familiares.
"Precisamos despertar para o conjunto. Se lutamos e construímos políticas públicas, por que nós não podemos executar?", questiona Cícera, reforçando a responsabilidade do Estado em garantir condições para as políticas públicas diversas, inclusive de Ater. "Temos a consciência de que a Assistência Técnica é uma política pública que tem que ser respaldada pelo governo, mas temos também que ter a compreensão de autonomia", explica, ao apontar que a governança de caráter popular não significa abrir mão de políticas públicas respaldadas pelos governos. Ao contrário, cobra-se autonomia na execução de ações que considerem as diversidades territoriais.
Atualmente, o Mãos na Terra do Potengi está sendo financiado pelo sindicatos da agricultura familiar do território do Potengi, buscando novas possibilidades de financiamento e expansão pelo estado do Rio Grande do Norte. O Mãos na Terra do Potengi surgiu de proposta da Contraf Brasil (a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil), e passou a ser desenvolvido na região do Potengi.
Governança
Cícera afirma que "de nada adiantaria a utilização dos métodos freireanos sem a liga com os aspectos políticos da agricultura familiar". Ela aponta que a dependência de um modelo de execução governamental de Ater atropela o sentido de autonomia popular, quando as metas e burocracias falam mais alto que os processos e vivências camponesas.
Evitando os possíveis choques entre uma ciência exclusivamente acadêmica e uma ciência popular, o Mãos na Terra do Potengi defende uma visão integrada entre métodos e governança para valorizar os saberes familiares e camponeses. Dessa forma, há um estímulo para reflexão constante de uma necessidade de revisão nas políticas de Ater e de seus sentidos.
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É
A proposta do Mãos na Terra do Potengi sugere ainda uma quebra das lógicas institucionalizadas dos programas governamentais. Para tanto, há a uma defesa de atividades de Ater considerando as diversidades de saberes e realidades em cada pedaço do Potengi. Juntando os elementos de autonomia financeira e administrativa, pedagogia freireana e reflexão na construção do conhecimento popular, busca-se um condição política de garantir a condição da agricultura familiar como protagonista nas atividades. A iniciativa está em consonância com as proposições apontadas pelo agrônomo e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Silvio Ponto, nas críticas de lógicas que pensam as famílias se adaptando aos programas governamentais, e não o contrário.
"É muito comum a gente ver no processo de política pública a realidade tendo que se moldar à política. Porque ela é feita de uma forma tão engessada, a partir de premissas que não são das organizações sociais, que não seja capaz de responder a demanda dessa ou daquela organização. É por isso que a gente deve falar muito mais em associativismo, e cooperação, do que necessariamente em cooperativa", afirmou o docente
apontando as possibilidades do associativismo e da cooperação conquistarem políticas adaptadas aos territórios, durante palestra na I Feira Nordestina da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Fenafes), em junho, em Natal (RN).
Cícera afirma que representatividade assume uma voz mais alta que a institucionalidade no Mãos na Terra do Potengi.
"Quem tem que se sentir importante nesse processo somos nós agricultores e agricultoras. Por isso, a gestão é descentralizada, mesmo com a participação da Fetraf-RN, dos sindicatos e da cooperativa. Talvez seja por isso que o projeto tenha essa identificação de acordo com as necessidades da gente", pontua Cícera.
Método
O Mãos na Terra do Potengi nasceu em setembro de 2020 e já realizou um diagnóstico das famílias, além da avaliação da água e do solo dos agroecossistemas para avançar nas atividades de Ater. O território de atuação está localizado há cerca de 100 quilômetros do município de Angicos, local em que Paulo Freire alfabetizou 300 pessoas em 40 horas, em 1963, iniciando sua história revolucionária na Pedagogia. Quase seis décadas depois da experiência, o método freireano permanece pulsando ações e reflexões nas mais diversas áreas de construção do conhecimento.
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No projeto-piloto no território do Potengi, Cícera cita a a obra "Extensão ou comunicação?", escrita por Paulo Freire em 1986, durante seu exílio no Chile como inspiração. Assim, ao contrário de um difusionismo de conhecimentos e governanças, o Mãos na Terra do Potengi pretende valorizar a diversidade de histórias e vivências a partir da condição relacional entre as pessoas, potencializando a autonomia entre suas diversas dimensões.
"Para despertar o processo das famílias na relação de governança das suas propriedades, para os seus processos produtivos e, principalmente, para que sejam elas as principais autoras das suas histórias", salienta Cícera.
O Mãos na Terra do Potengi busca se diferenciar das assistências técnicas convencionais, em que empresas do setor batem metas e se aproximam de uma ideia de difusão de saberes. O agricultor José Eduardo Silva, diretor do Sintraf de Bom Jesus, no Rio Grande do Norte, ressalta o processo educativo continuado do projeto.
"Nós não acreditamos nessa assistência [técnica] onde o técnico chega e diz 'o senhor está errado' a 'senhora está errada' e 'precisamos mexer na sua rotina, no seu jeito de plantar, colher, criar, tratar'. Vemos esse tipo de assistência não constrói. E o projeto [Mãos na Terra do Potengi] traz essa proposta diferenciada. Iniciamos essa ação na região e tivemos uma boa acolhida dos agricultores, uma vez que colocamos eles como atores principais", explica.
Edição: Douglas Matos