"Tem compras de vinte reais, compra de quinze reais, compra até de dez reais, e a gente entrega para as pessoas. Isso é bacana, porque você tem professores da rede pública comprando, você tem empregada doméstica comendo orgânico igual a patroa dela, tá ligado?", diz Thiago Vinicius, empreendedor social, cofundador da Agência Solano Trindade e do Armazém Organicamente, o primeiro ponto de venda de orgânicos da periferia de São Paulo.
Thiago luta contra uma realidade comum nas periferias: a pouca oferta de frutas e verduras frescas e o alto consumo de produtos ultraprocessados.
O armazém inaugurado em 2019 fica no Campo Limpo, zona sul da cidade, região onde as pessoas chegam a andar mais de 500 metros da sua casa para encontrar um alimento in natura. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), locais onde o acesso a alimentos in natura é escasso ou impossível são classificados como desertos alimentares.
"Quando a gente simplesmente democratiza o acesso a um alimento sem veneno, a gente democratiza um acesso a um alimento com energia limpa, que foi plantado com todo o amor", pontua.
Cozinha de todo o mundo
Para o jovem, acessar alimentos saudáveis é resgatar o histórico da cultura alimentar dessas famílias. "A periferia é PHD em alimentação, tá ligado? Quando você pensa que quem faz o sushi, a comida italiana, a comida marroquina, a comida americana, são as pessoas que vêm da quebrada. São pessoas que manjam muito de comida, tá ligado? A gente sabe que todas as cozinhas do mundo elas estão nas favelas", afirma.
Cleonice, conhecida por Tia Nice, é mãe de Thiago. Ela comanda a Cozinha Criativa, espaço onde é aproveitado os alimentos que não são vendidos no Armazém. A chef conta que a transformação já vem inspirando o entorno.
"Eu vejo que tem pessoas que estão fazendo. Elas estão atravessando também a mesma ponte. Quando eu ando de carro por aí eu já vejo o jardim de alface por um parapeito de janela. Isso pra mim é legal, eu subo aqui, eu vejo o seu Getúlio com um monte de alface, com um monte de cebolinha", conta entusiasmada.
Na pandemia, o armazém atuou como um ponto de fortalecimento da rede de proteção das pessoas mais vulneráveis. Foram 200 mil cestas básicas e 150 mil marmitas distribuídas só nesse período. E as ações solidárias continuam.
Atualmente, os pratos criados por Tia Nice são vendidos no restaurante do local, e também saem para doações. De segunda a sexta-feira, com apoio financeiro da The Caring Family Foundation, 800 marmitas são levadas diariamente às comunidades carentes da Zona Sul.
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"Me comoveu muito saber que do meu lado tem uma comunidade que tem vários idosos acamados e muita criança e muita mãe que perdeu o emprego. Então nessa quando o restaurante fechou a gente olhou pra ela com muito carinho. Tipo assim, por que não pegar e levar tudo cozido? Que é muito importante você levar consumido porque não adianta eu chegar com uma cesta básica e o gás acabou", explica Tia Nice.
Seu filho conta que por ali foi desenvolvido um modelo de negócio onde "quem tem dinheiro come, e quem não tem come também".
"Todos os dias são várias tias Nices que saem daqui do Campo Limpo pra ir pro centro cozinhar pra galera. Ela sempre sabe o que é o coração da banana. Sabe que a comida é muito mais do que uma comida, é uma comida terapêutica, é aquela comida que vai alimentar não só o seu o seu corpo, mas o espírito. Então é uma coisa muito profunda a relação que a favela, que as comunidades de matriz africana, que os os guaranis, os pataxós tem com alimentação", argumenta.
Vencer a fome
Uma das comunidades atendidas é a ocupação Nova Esperança, no Jardim São Luis, onde vivem 310 famílias. "Não é todo dia que a gente compra um pão, né? Fico aguardando ela (marmita) chegar pra poder comer e passar mais um dia na vida", revela Lindinalva Maria da Silva, que atuava como doméstica antes de ser dispensada durante a pandemia.
Cuca, a liderança que recebe e organiza as doações na Nova Esperança, reitera que a pandemia foi embora, mas a fome permanece. Ela teme pelo fim do projeto, hoje o único a abastecer a comunidade.
"Se não fosse eles eu não sei o que eu ia fazer com essas famílias, de verdade. Porque não está chegando mais nada. Parou tudo. Como se o tempo tivesse dado uma parada e a fome está muito grande. Falar pra você que chegou aqui uma família que veio de longe buscar essas marmita. Eh a moça chegou a desmaiar de tanta fome estava", explica a líder social.
"É muita fome, é muita gente necessitando, muita gente sem onde tirar. Eu eu canso de ver gente mexendo no próprio lixo pra comer", completa Cuca.
As condições de vida precárias das famílias da Ocupação fazem com que o consumo de verduras seja uma realidade que, infelizmente, só vem nas marmitas.
A conscientização no caminho de uma alimentação mais saudável, na visão de Thiago, envolve se comprometer com o crescimento social e econômico das pessoas. Segundo ele, é somente quando se acessa uma alternativa de geração de renda que se pode entrar no debate sobre o que é, de fato, "comida de verdade".
"A gente tá em lugares dentro da cidade mais rica do da América Latina, que é uma Serra Leoa. Quando eu vou pra lugares como Capão Redondo, Jardim Ângela, quando eu vou pra cidade de Tiradentes, quando eu vou pra Brasilândia. Então, o que que é comida de verdade pra quem não tem um real e quando consegue, vai comprar um macarrão instantâneo?", questiona.
"Eu parto de um lugar que as pessoas sabem o que é comida de verdade. Só que as pessoas, a maior parte da população, elas estão tolidas do processo de gerar renda", diz. "No momento que eu ofereço pra elas uma marmita vegetariana, quando ela tiver grana, ela vai falar, nossa, aquele legumes me salvou. Aumentou a minha imunidade. A pessoa já tá ligada. Entendeu?", finaliza.
Edição: Rebeca Cavalcante