Meu pai abandonou a minha mãe enquanto ela ainda estava grávida. Ela deu à luz quando ele já havia partido. As pessoas me chamam de “filha de uma p***”. Eles me perturbam e me machucam bastante, dizem que me perseguirão porque sou estrangeira, o que me faz sofrer muito.
Estas são as palavras de Emma*, uma garota de 13 anos de idade natural da cidade de Beni, na região leste da República Democrática do Congo (RDC), próxima à fronteira com Uganda. Grace, mãe de Emma, ainda estava na escola quando encontrou e se envolveu com um soldado uruguaio que trabalhava na RDC como pacificador da Organização das Nações Unidas (ONU). Quando Grace engravidou, “Javier” prometeu-lhe suporte e disse para que não se preocupasse. Grace teve a impressão de que eles se casariam e começariam uma família.
No entanto, algumas semanas depois Javier retornou ao Uruguai e nunca mais ouviu-se falar dele. Impossibilitada de cobrir os custos da gravidez e do parto, Grace foi profundamente afetada pela partida do pai de sua filha. Para conseguir comida, roupas e abrigo para Emma, Grace se viu forçada manter relações sexuais com os agentes de paz da área próxima à base da ONU em troca de pequenas quantias em dinheiro ou itens como pão, leite e sopa. Ela ainda não recebeu nenhum apoio de Javier ou dos militares da organização e não consegue suprir as necessidades de longo prazo de sua filha, incluindo sua educação.
Apesar da dor que o abandono lhe causou, Emma diz que não deseja nada além do retorno de seu pai para melhorar sua situação:
Dói quando vejo agentes da ONU passando, porque as outras crianças têm seus pais, mas eu não tenho o meu. Eu gostaria de dizer ao meu pai que, onde quer que ele esteja, pense em mim. Ele deveria saber que eu não tenho família. Se minha mãe morrer, quem cuidará de mim?
Segundo nossa pesquisa e relatórios internos da ONU, a história de Emma está longe de ser a única. Contudo, esta é a primeira vez que crianças filhas de agentes de paz da ONU falaram diretamente sobre o impacto do abandono em suas vidas e famílias.
Suas histórias corroboram com entrevistas anteriores que realizamos com mães de crianças filhas de agentes da ONU no Haiti. Tanto lá quanto na RDC, funcionários da organização deixaram mulheres e meninas grávidas criarem seus filhos em condições deploráveis, muitas delas sem receber qualquer assistência financeira.
Nossas descobertas no país centro-africano são baseadas em 2.858 entrevistas com membros da comunidade congolesa, incluindo 60 entrevistas detalhadas com vítimas de má conduta sexual que conceberam filhos de agentes das forças de paz das Nações Unidas, e 35 entrevistas com as crianças nascidas dessas relações. A pesquisa, que remonta a 2018, implica funcionários da ONU de 12 países, em sua maioria tanzanianos e sul-africanos. As mães dizem que esses pais ausentes possuíam cargos variando desde de soldados, oficiais e pilotos, a motoristas, cozinheiros, médicos e fotógrafos.
Segundo nossa pesquisa, a mais jovem menina a engravidar de um agente de paz da ONU tinha apenas dez anos de idade. Metade das mães tinham menos des 18 anos quando engravidaram. Na entrevista a seguir, uma mãe congolesa de 16 anos relembra ter sido traficada por sua própria família e engravidado quando tinha 10 anos:
Eu era muito jovem, tinha apenas dez anos. Só depois me dei conta de que fui vendida por minha tia. Homens compravam cerveja no pub para dá-la a mim. Quando eu ficava bêbada, eles lucravam com atos sexuais indesejados. Todas as manhãs, minha tia me dava leite, pão, comida e água para que eu me recuperasse de toda a energia que perdia. (Mãe, 16 anos)
“Capital mundial do estupro”
Alimentada por níveis extremamente altos de pobreza, deslocamentos e falta de sistemas judiciais eficazes, a RDC tem o maior número mundial de acusações de exploração sexual e abuso perpetrados por agentes de manutenção da paz integrantes das Nações Unidas – cerca de um terço de todas as alegações desse tipo desde a virada do século. Ainda assim, não existia até então nenhuma pesquisa sistemática sobre reivindicações de paternidade ligando-as com a Monusco (nome da atual missão da ONU na RDC, que assumiu a missão anterior, em 2010).
A RDC é o símbolo de um país devastado pela guerra e com uma próspera economia sexual envolvendo agentes de manutenção da paz. Anos de colonialismo, opressão por regimes nacionais e estrangeiros, disputas por poder e corrupção deixaram cicatrizes indeléveis. A segurança continua sendo altamente volátil devido às lutas entre mais de 130 grupos armados. Nas últimas semanas, ocorreram alguns protestos violentos contra as forças de paz da ONU no leste do país, com os manifestantes pedindo que as Nações Unidas se retirem da área. Em um desses incidentes, dez pessoas teriam sido mortas. É com esse pano de fundo que o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, está em visita ao país africano.
A violência sexual se tornou uma característica definidora desta região conflituosa. Descrições que apelidam a RDC de “capital mundial do estupro” e “o pior lugar do mundo para ser mulher” refletem como a violência relacionada a conflitos armados normalizou o estupro e a exploração sexual por perpetradores civis, trabalhadores humanitários e agentes de paz da ONU.
Nossas entrevistas revelam que a maioria das mulheres e meninas da RDC que tiveram relações sexuais com agentes da paz – seja de forma voluntária ou forçada – estavam vivendo em meio a condições de extrema pobreza. Ouvimos relatos de meninas e mulheres que foram estupradas por um ou mais agentes de manutenção da paz, às vezes enquanto imploravam por assistência humanitária. Uma entrevistada contou ter sido estuprada por vários agentes das Nações Unidas quando tinha 13 anos e descreveu a forte estigmatização por não ser capaz de identificar quem é o pai da criança fruto dessa violência:
As pessoas começaram a se perguntar como essa garotinha acabou grávida. Eles riam muito de mim. Diziam, “Olhe para ela, que diz ter sido estuprada. Ela tem uma criança branca”. Muitas pessoas riam de mim, me sentia insultada. Tudo isso me machuca muito. (Mãe, 25 anos)
Enquanto as missões de paz são creditadas como tendo papel crucial na proteção dos direitos humanos em conflitos, o risco de agentes de manutenção da paz explorarem ou abusarem dos que mais precisam de proteção coloca em dúvida a legitimidade e moralidade da instalação de missões desse tipo.
Atualmente, mais de 97 mil agentes de paz de 120 países estão servindo em 12 operações das Nações Unidas em todo o mundo. Apesar de ser dever de todo o pessoal da organização proteger e “não cometer qualquer dano”, crimes sexuais cometidos contra civis locais, especialmente meninas, foram relatados onde quer que as missões foram postas em prática.
Alegações de má conduta sexual documentadas pelas Nações Unidas
A presença de agentes de manutenção da paz tem sido repetidamente associada com um rápido crescimento do tráfico sexual e surgimento de bordéis próximos às áreas de bases militares, prostituição infantil, troca de sexo por bens ou comida, criação e distribuição de filmes pornográficos, bem como crescimento de casos de assédio nas ruas e transmissão de doenças sexualmente transmissíveis como a AIDS.
Um porta-voz das forças de paz da ONU disse que “Nos últimos cinco anos, nós temos adotado medidas para prevenir esses crimes, investigar os supostos perpetradores, inclusive do contingente militar, e responsabilizá-los, até mesmo por meio de repatriação. Nós temos fortalecido nossas políticas e protocolos, bem como nossa capacidade de realizar investigações conjuntas com os Estados-membros. Continuamos a relatar publicamente as alegações à medida que as recebemos, bem como relatamos o status dessas acusações em nosso banco de dados públicos. Os acusados foram apartados da organização e ninguém que tenha sido objeto de uma investigação fundamentada sobre má conduta sexual pode ser recontratado dentro do sistema”. (Confira a resposta completa no final do artigo).
Até 4 de agosto de 2022, o banco de dados públicos sobre alegações de má conduta sexual em missões de campo da ONU havia registrado 426 acusações que resultaram no nascimento, desde 2007, de crianças filhas de agentes de manutenção da paz. Apenas 44 dessas alegações foram fundamentadas, com a grande maioria das reivindicações (302) permanecendo “pendentes”.
Nosso trabalho no Haiti e na RDC revela que as crianças filhas de funcionários da ONU foram concebidos em uma ampla gama de relações sexuais, indo desde o estupro e precário “sexo de sobrevivência” (realizado em troca de comida ou proteção) até namoros e relacionamentos de longo prazo que borram as linhas entre abuso explícito, consentimento e formas mais sutis de exploração. A maioria das mães descreve o contexto da concepção de seus filhos como “transacional”, centrado na troca de sexo por comida, dinheiro, roupas ou outros itens:
Eu vivia miseravelmente antes de ele começar a me enviar dinheiro e resolver os meus problemas. Ele me colocou em condições de amá-lo. Ele não me forçou. Ele prometeu se casar comigo e dar o dote à minha família. Confirmou que me levaria para seu país e queria ter vários filhos comigo. Eu acreditei nele, soava como verdadeiro, não enxergava que me contava mentiras. Àquela altura, eu não tinha nada. (Mãe, 23 anos)
Vozes dos filhos de agentes de manutenção da paz
O documento mais antigo sobre “bebês de agentes de manutenção da paz” surgiram durante a presença da ONU no Timor Leste e região oeste do continente africano, onde se dizia que os mantenedores da paz engravidavam mulheres e meninas locais, depois as abandonavam sem oferecer qualquer forma de apoio à criança. Após esses relatórios, mais evidências surgiram em relação a uma série missões de paz, incluindo as realizadas no Camboja, República Centro-Africana, Haiti e RDC.
Embora a questão da má conduta sexual por parte das forças de manutenção da paz tenha atraído significativa atenção acadêmica e pública, tem havido muito menos atenção às crianças nascidas desses violações. Para nosso projeto de pesquisa na RDC, coletamos uma ampla variedade de histórias de membros da comunidade congolesa de todas as idades sobre as circunstâncias de suas interações com as forças de paz.
Os participantes não foram solicitados a falar sobre exploração sexual e abuso, e podiam compartilhar qualquer experiência que quisessem. Suas narrativas, coletadas em comunidades ao redor de seis bases da ONU no norte do país, foram gravadas em áudio por assistentes de pesquisa congoleses treinados. Para que crianças muito jovens (seis anos de idade) pudessem ser incluídas na pesquisa, utilizamos métodos de entrevista apropriados para essa faixa etária (por exemplo, pedimos a elas que desenhassem suas famílias ou comentassem sobre fotografias de agentes de paz e crianças congolesas).
Nenhuma das crianças estava em contato com o pai quando as entrevistas foram realizadas e muitas não sabiam nem mesmo seu nome ou paradeiro. A maioria foi informada de que o pai partira na época da gravidez ou do nascimento, mas poucos sabiam sobre as circunstâncias de sua concepção ou abandono:
Desde que eu nasci, nunca tive a chance de saber nada sobre o meu pai além do fato de que tenho um. Nunca escutei sua voz, nunca. (Criança, 13 anos).
Todas expressavam frustração sobre a falta de apoio material por parte de seus pais, indicando que, mesmo os entrevistados mais novos, enxergavam seu acesso insuficiente a recursos como algo injusto e diretamente ligado ao pai ausente:
Eu me lembro da minha mãe, mas não sei nada sobre o meu pai. É por isso que eu estou sempre com fome. Se ele vivesse comigo, eu não estaria com fome. (Criança, 10 anos)
Mais importante foi a sensação de falta de propósito ou direção na vida. O desconhecimento de suas raízes e história familiar deixou um vazio em relação à autoestima e consciência social:
Eu nunca vou à escola. Não recebo ajuda par comprar alimentos e mesmo quando consigo comida, começo a pensar na minha mãe que vive no estrangeiro e no meu pai que nunca vi. Me sinto sem sentido em uma casa onde não posso estar perto dos meus pais. Quando penso na profunda pobreza em que estou, sinto muito desespero. (Criança, 13 anos)
As redes maternas muitas vezes lhes forneciam cuidados e atenção limitados devido à sua concepção ilegítima e ao estigma relacionado a essa origem. A privação das relações parentais e dos bens materiais levou algumas das crianças a se considerarem órfãos:
Minha mãe me deu à luz e me abandonou quando eu tinha dois meses de idade. Ela me deixou na casa dos meus avós. Quando eles ligam a para minha mãe para pedir dinheiro, normalmente ela nem atende ao telefone. Eu não acho que ela me considera seu filho. Ela abandonou a mim e aos meus dois irmãos. (Criança, 14 anos)
Eu sou como um órfão. A Monusco deveria se lembrar de nós, que fomos deixados aqui em Kisangani. Somos considerados órfãos. (Criança, 13 anos)
Muitas crianças filhas de agentes de paz relataram maus-tratos por parte de suas mães, levando-as a questionar seu direito de existir:
[Minha mãe] nunca conversa comigo amigavelmente. Ela me diz que eu não valho nada por não ser como seus outros filhos. Quando ela diz isso, eu sinto que seria melhor que eu pegasse uma faca, me cortasse e morresse de uma vez por todas. Me chateia muito não ter o apoio da minha família (Criança, 13 anos)
Vozes das mães abandonadas
Em 2019-2020, publicamos o primeiro estudo empírico com foco em gravidezes relacionadas a exploração sexual e abusos no Haiti. Ao perguntar a 2.500 haitianas como é ser mulher ou menina vivendo em comunidades onde há forças de paz, as colegas pesquisadoras Sabine Lee e Susan Bartels descobriram que a má conduta sexual e abandono de crianças eram uma preocupação generalizada entre as entrevistadas. A pesquisa que realizaram revelou que essas mulheres e meninas estavam lutando por sua própria sobrevivência mesmo antes, então as coisas pioraram tendo que cuidar de uma criança depois de ser explorada, abusada ou “surpreendida” por agentes das forças de manutenção da paz.
Em nossa pesquisa subsequente realizada na RDC, 42% de todas as entrevistas (1.182) falaram sobre filhos de agentes de manutenção da paz, enquanto que no Haiti essas entrevistas correspondiam a 10% do total. Essa porcentagem sugere que casos de paternidade por parte desses agentes devem ser mais comuns no país africano, além de que no Haiti há outras questões envolvidas, como a transmissão de cólera por parte de agentes de paz, grande preocupação entre as meninas e mulheres entrevistadas.
No início dos anos 2000, as missões de paz na RDC se tornaram notórias devido a alegações de exploração sexual e abusos. A grande quantidade de acusações associadas com a missão, incluindo redes de exploração sexual e pedofilia, implicaram agentes de paz de quase todos os continentes e grupos (militares, policiais e civis).
De maneira similar a outros países onde a chegada de agentes de manutenção da paz coincidiu com o crescimento da prostituição infantil, a prática de sexo com menores de idade alcançou níveis sem precedentes na RDC. Mesmo sendo ilegal, surgiu no país uma extensa economia do sexo envolvendo crianças que são chamadas de “kidigo usharatis” (pequenas prostitutas), e onde crianças de seis anos de idade vendem sexo para sobreviver.
A vergonha e estigma social relacionado à exploração sexual e gravidezes consequentes de abusos nega há várias mães a possibilidade de retorno às suas famílias, lares e vilas, impedindo-as de seguir com os estudos ou carreiras e formar uma família tradicional:
Eu não estou casada porque fui vítima de violência sexual. Estou desempregada, sem ter como gerar renda para atender às necessidades do meu filho, não tenho como comprar sopa, sandálias e outras coisas. Minha família não tem como me ajudar pois não possui recursos, é pobre. Nós estamos passando fome. (Mãe, 16 anos).
Muitas mães, independentemente de se tiveram relações sexuais consentidas ou não, já estavam em condições precárias quando engravidaram. Criar uma criança filha de um agente de paz e por ele abandonada enfraqueceu consideravelmente a segurança econômica dessas mães:
O rapaz da Monusco vive em paz com sua esposa e filhos, enquanto minha casa tem muitas goteiras e os lençóis são velhos. Ele basicamente destruiu minha vida quando me engravidou. Ele me enganou e agora minha vida está cheia de sofrimento [e] dificuldades iminentes. (Mãe, 36 anos)
Ter que cobrir as despesas com a maternidade e cuidados com a criança colocou algumas dessas mães numa espiral de rejeição social uma vez que a extrema pobreza as levou a novamente trabalharem com sexo para custear os gastos básicos dos filhos. Algumas mães relataram ter vários filhos de diferentes agentes da missão de paz em seu país.
Eu não me importava com o que era certo ou errado. Faria o que fosse necessário para conseguir comida. Minhas preocupações eram conseguir roupas para a criança. Vivia longe da minha família, parei de frequentar a escola e me tornei prostituta por escolha. Homens me davam dinheiro, que ajudava muito. Tive a primeira criança, depois a segunda. (Mãe, 21 anos)
Devido a tradições locais de exclusividade sexual, o valor das noivas depende de serem virgens. Meninas que fizeram sexo antes do casamento lutam para manter seus status sociais. Mães de crianças filhas de agentes de manutenção da paz lidam com preconceito por serem vistas como promíscuas, soropositivas e desrespeitosas quanto aos papéis tradicionais de gênero. E esse julgamento ocorre sem que se leve em conta a idade dessas congolesas ou a (falta de) consensualidade da relação:
Por causa dessa criança, minha vida é triste. Nenhum homem jamais pensará em se casar comigo. Eles me chamam de “esposa de beninense”. Minha reputação está arruinada. Quando as pessoas ficam sabendo que você foi amiga de algum homem da Monusco, elas começam a te desprezar e a falar mal de você. Não é fácil encontrar outro amigo homem se você foi enganada por um deles. (Mãe, 36 anos)
Observar a privação social e econômica das crianças causa culpa adicional em suas mães, que se veem como negligentes:
A criança me pergunta todos os dias quem é o pai dela. Onde ele mora? Qual é a sua nacionalidade? Tudo isso causa muito remorso, uma criança deveria saber [quem é o seu pai]. Ela me pergunta, como eu o encontrarei? E então ela mesma responde que não há como encontrá-lo. Os vizinhos sempre fazem piada dela dizendo que é a “filha de um branco”. Meus amigos trouxeram até mesmo diferentes tipos de veneno para que eu a matasse. Por causa disso, ela está sempre dentro de casa, tem vergonha. (Mãe, idade desconhecida)
Desejo de encontrar o pai
Quando solicitadas a desenhar suas famílias, a maioria das crianças filhas de agentes de manutenção da paz desenharam um família nuclear que não coincidia com sua situação familiar real. Muitas dessas crianças foram explícitas sobre o desenho se tratar de uma expressão de seu desejo de se reunir com seus pais:
O desenho significa que eu quero ter um pai e uma mãe em nossa casa. (Criança, 7 anos)
Participantes de todas as idades discutiram a possibilidade de procurar por seus pais para fazer dessa família imaginada uma realidade. Quase todos previram que as contribuições financeiras resultariam da reconciliação com seus pais:
Eu quero que ele venha me resgatar da pobreza. Eu mostraria a ele que não tenho nenhuma roupa, comida e loção corporal. E pediria a ele dinheiro para pagar a escola. Com ele perto de mim, eu teria orgulho de dizer às pessoas que tenho um pai. Outras crianças que estão vivendo com seus pais devem viver bem, eu acho. (Criança, 13 anos)
Normalmente, as identidades dos integrantes das missões de paz eram conhecidas, e mesmo os entrevistados mais jovens se sentiam julgados por suas comunidades devido às circunstâncias nas quais foram gerados. O estigma manifestava-se numa gama de experiências, desde provocações e bullying até discriminação aberta, abusos e negligência:
Algumas pessoas dizem que eu sou diferente porque meu pai [me] deixou quando eu era um bebê. Alguns se surpreendem de saber que eu ainda estou vivo. Quando escuto as pessoas fofocando sobe mim e meu pai – um pai que nunca vi – isso machuca muito meu coração e começo a chorar na mesma hora. (Criança, 14 anos)
Esses comentários corroboram a representação dos filhos de agentes de manutenção da paz como crianças “sem grupo” dentro de suas próprias comunidades. Concebidas por estrangeiros, essas crianças carregam estigma devido à sua aparência diferente e origem interétnica. Elas contaram que são humilhadas e ridicularizadas por não serem congolesas, mas sim “brancas” e “estrangeiras”, ou destacados de outras formas por sua herança étnica. Alguns dos insultos mais recorrentes a essas crianças eram “filha/filho da p***”, “bastardo” e “ilegítimo”.
Meu filho é descriminado em todo lugar que vai. Ele é chamado de “filho da p***. As pessoas dizem que ele não merece estar vivo. (Mãe, 20)
Barreiras para a justiça
O período padrão de serviço para as forças de paz da ONU é de seis a nove meses, tornando altamente improvável que os agentes de paz estejam no país anfitrião quando seus filhos nascerem. Vinculada a acordos entre a ONU e os Estados-membros, o papel da organização no avanço das reivindicações de paternidade se limita a coordená-las e facilitá-las. Ao invés de oferecer compensação por meio das Nações Unidas, os protocolos de assistência designam a responsabilização aos agressores e seus países de origem, enfatizando a responsabilidade individual de quem cometeu o crime. No entanto, os países-membros muitas vezes não estão dispostos ou são incapazes de cooperar, deixando muitas alegações sem solução.
Até o momento, não foi tornada pública nenhuma informação sobre processo bem-sucedido de pagamento de pensão, levantando a questão sobre se alguma mãe recebe apoio financeiro regularmente. Embora uma decisão legal histórica tenha sido alcançada nos tribunais haitianos em 2021 – ordenando que um agente de paz uruguaio pague pensão por uma criança que ele gerou e abandonou em 2011 – um mecanismo claro para fazer cumprir essa decisão por meio do sistema jurídico nacional do Estado de origem da força de paz ainda não foi estabelecido, segundo o conhecimento que tenho sobre a questão.
Alegações de paternidade documentadas pela ONU, agosto de 2022
A política de tolerância zero das Nações Unidas bane quase toda relação sexual entre agentes mantenedores da paz e civis locais, classificando-as como exploradoras e abusivas devido ao contexto (conflito, pobreza, deslocamento) no qual ocorrem. No entanto, nossos dados mostram que essa proibição geral de relações sexuais é ineficaz e que não há vias de reclamação acessíveis e válidas para as vítimas. A falta de processos e respostas legais efetivas para os delitos – identificados por nossas pesquisas tanto no Haiti quanto na RDC – demonstra que os agentes de paz conseguem não somente se livrar das acusações de má conduta sexual, como também gerar e abandonar crianças sem ter que lidar com as consequências.
Das 26 mães congolesas entrevistadas que contataram as autoridades da missão de paz da ONU na RDC para relatar casos de paternidade, a maioria deu a entender que suas queixas foram ignoradas ou rejeitadas. Ainda que um quinto das entrevistadas tenha passado por uma investigação inicial ou caso legal, nenhuma delas havia recebido compensação legal.
Eu fui à [uma das bases da] Monusco, a criança tinha quatro anos de idade. Pedi a eles que me ajudassem a contatar o pai da criança, pois eu estava sobrecarregada com as responsabilidades de criar e custear um filho sem ajuda. Eles me disseram para voltar em um mês para pegar alimentos. Eles me deram arroz, feijão, óleo de cozinha. Recebi o mesmo no mês seguinte. No terceiro mês, eles me afugentaram e pediram que eu abrisse um caso em algum lugar… entendi que não haveria apoio e decidi ficar em casa. (Mãe, 28)
Algumas participantes detalharam que autoridades da ONU violaram seus direitos a informação sobre como iniciar uma ação legal, reforçando a noção amplamente compartilhada de que a organização não possui qualquer interesse em responsabilizar seus agentes por gerar filhos:
Eu tentei conversar com autoridades da Monusco e solicitei que eles procurassem pelo pai da criança em seu país natal, mas meus esforços não tiveram resultado. Eu fui ao local onde mulheres que são deixadas com seus filhos devem ir para expor seus problemas a uma funcionária da ONU. Quando cheguei lá, eu não vi qualquer reação. Na verdade, eles não fizeram nada. É difícil de entender (a entrevistada chora). (Mãe, idade desconhecida)
Mães que relataram a realização de investigações iniciais frequentemente descreveram um acompanhamento ruim e má gestão de seus casos, longos atrasos e o não comprometimento com os próximos passos prometidos. Em algumas circunstâncias, processos ilegais e corrupção foram considerados como tendo sido os motivos pelos quais as vítimas não foram tratadas segundo as orientações das Nações Unidas. Uma mãe afirmou que o médico que realizou o teste de DNA de seu filho foi subornado. Em muitos casos, foi dito que alegações de má conduta sexual e nascimentos de crianças filhas de funcionários das missões de paz da ONU foram varridos para debaixo do tapete:
As autoridades da Monusco não respondem, eles não fazem nada, como se estivessem em silêncio para encobrir as ações desse homem. Por sorte, o superior de meu marido foi realocado e eles trouxeram um novo chefe para a missão. Quando meus pais apresentaram o caso, ele pressionou meu marido a pagar as despesas [com a criança]. Descobrimos que o chefe anterior era corrupto. (Mãe, idade desconhecida)
E quando evidências críveis foram encontradas – evidências que substanciavam a alegação – a repatriação dos agentes envolvidos interferiu nas chances de as participantes da pesquisa conseguirem apoio, uma vez que isso retirava o suposto agressor da jurisdição congolesa e, portanto, de responder a processo no Estado anfitrião. Em um exemplo, uma mulher reportou um agente de paz de Bangladesh ao seu superior:
Eu expliquei a ele como seu soldado havia abusado de mim e me engravidado sem oferecer qualquer auxílio... Quando eu retornei para apresentar meus argumentos, eles revelaram que o soldado havia sido enviado de volta à África do Sul por eu tê-lo denunciado. Eu soube que ele foi realocado para a África do Sul sem ouvir o que eu tinha a dizer. Decidi que era melhor deixar o assunto de lado, pois já estava envolto em discriminação e desprezo. (Mãe, 35 anos)
Um fardo pesado
Tanto a nossa pesquisa quanto os relatórios internos da ONU demonstram que o grupo de crianças que foram geradas e abandonadas por agentes de manutenção da paz na República Democrática do Congo é significativo e continuará a crescer. A ONU poderia e deveria ter papel importante em facilitar a comunicação com os pais dessas crianças e em educar os agentes mantenedores da paz sobre os direitos delas.
Nosso trabalho na RDC ofereceu pela primeira vez às crianças filhas de funcionários da ONU em missões de paz no país a oportunidade de contarem suas histórias e ajudarem a moldar respostas para suas situações únicas. Atualmente, muitas dessas crianças são excluídas da participação na sociedades e sofrem desvantagens desproporcionais.
Agentes de manutenção da paz, de quem se espera um comportamento mais ético do que o das facções locais, perdem sua legitimidade como facilitadores da paz quando se envolvem em má conduta sexual e abandono infantil. A traição da confiança do Estado anfitrião é agravada quando a ONU deixa de cuidar das vítimas e seus filhos.
Pesquisas acadêmicas têm ressaltado os benefícios de testes obrigatórios de DNA para todos os agentes de manutenção da paz antes de seu destacamento para missões, de forma a prover com evidências quaisquer casos futuros de supostos casos de estupro e alegações de paternidade. Até o momento, contudo, apenas um Estado-membro, a África do Sul, iniciou a coleta de amostras de DNA de suas tropas antes do destacamento. No final de 2021, o país despachou um time para a RDC para coletar amostras de mães e seus filhos no intuito de facilitar a resolução de casos em aberto. Mas mesmo nos casos de teste positivo de compatibilidade de DNA, obter reconhecimento legal da identidade do pai e um acordo para garantir suporte financeiro é tudo menos simples.
Todavia, a ONU tem adotado, nos últimos anos, alguns passos importantes na direção de melhor amparar as mães e seus filhos. Essas medidas incluem o estabelecimento do Gabinete do Defesa dos Direitos das Vítimas e o Fundo Fiduciário para as Vítimas, que objetivam oferecer serviços especializados às vítimas, como assistência educacional para as crianças nascidas de explorações ou abusos.
Enquanto esses avanços bem-vindos começam a mostrar algum resultado, a ONU reconhece a persistência de lacunas maiores relacionadas a reparações legais – especialmente quanto à paternidade e assistência às crianças – que, quando ausentes, impedem que crianças como Emma tenham uma infância feliz, além de poderem perpetuar ciclos intergeracionais de pobreza, estigma e abuso. Resoluções e medidas disciplinares podem estar se tornando mais abrangentes, mas acusações continuam a ser desconsideradas e o dano deixado para trás permanece sem reparo:
*Todos os nomes foram alterados para proteger a identidade das participantes.
Resposta da ONU
A ONU reconheceu que “apesar de claras conquistas na resposta das Nações Unidas a incidentes de exploração sexual e abuso”, alegações envolvendo pessoal da organização continuam a emergir, inclusive nas operações de manutenção da paz. A organização disse que dentre essas acusações históricas está a de que os funcionários em campo trabalham para encobrir os crimes. Um porta-voz afirmou ser perturbador que casos continuem a surgir, mas que “nos últimos cinco anos, nós temos tomado medidas para prevenir esses delitos, investigamos supostos agressores, inclusive contingentes militares, e os responsabilizamos, inclusive por meio de repatriação.
“Nós temos fortalecido nossas políticas e protocolos e nossa capacidade de realizar investigações conjuntas com Estados-membros. Continuamos a relatar publicamente as alegações à medida que as recebemos, bem como relatamos o status dessas acusações em nosso banco de dados públicos. Os acusados foram apartados da organização e ninguém que tenha sido objeto de uma investigação fundamentada sobre má conduta sexual pode ser recontratado dentro do sistema”.
A ONU disse que o primeiro defensor dos direitos das vítimas foi nomeado há cinco anos para liderar os esforços de promoção dos direitos e da dignidade das vítimas conjuntamente a dedicados defensores em solo. “Eles garantem que as vítimas recebem assistência médica, psicossocial e legal, dão apoio a elas durante investigações da ONU e do Estado-membro, bem como dão suporte para prosseguir com reivindicações de paternidade e pensão alimentícia”. A organização também afirmou que “ainda que a ONU não ofereça compensação financeira às vítimas, projetos financiados pelo Fundo Fiduciário de Apoio às Vítimas de Exploração e Abuso Sexual permitiram que elas atualizassem suas habilidades para que possam se envolver em atividades geradoras de renda, permitindo que reconstruam suas vidas... Sabemos que muito mais precisa ser feito e continuamos a intensificar nossos esforços”.
“O relatório mais recente do Secretário Geral acerca das medidas especiais para proteção contra exploração e abuso sexual reconhece o fato perturbador de que muitas alegações de paternidade e pensão envolvendo agentes de manutenção da paz permanecem sem solução. Resolvê-los é responsabilidade compartilhada pela ONU e os Estados-membros para garantir que as obrigações parentais que cabem ao pai sejam cumpridas. Estes são casos complexos, normalmente envolvendo várias jurisdições com diferentes estruturas legais. A ONU está empenhada em trabalhar com os Estados-membros para encontrar uma solução para este desafio.”
E continua: “[O Secretário-Geral] insta os países que contribuem com tropas e policiais e que possuem pedidos de paternidade pendentes há seis meses ou mais a tomar medidas claras para facilitar sua resolução, inclusive abordando obstáculos jurídicos substantivos e processuais. Ele também pediu ao defensor dos direitos das vítimas que facilite a prestação de assistência e apoio básicos – incluindo alimentação, educação e assistência médica e psicossocial – às mães e crianças. Ele instruiu o defensor dos direitos das vítimas, em colaboração com outras entidades da ONU, a desenvolver uma estratégia revigorada para lidar com essas reivindicações”.
Sobre a autora: Kirstin Wagner é pesquisadora bolsista em Psicologia na Universidade de Birmingham (Inglaterra).