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Aquilombar o Brasil é preciso

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Mais de 3 mil quilombolas estiveram presentes no Ato Aquilombar em Brasília - Tiago Rodrigues/ ATBr
As comunidades quilombolas não são um passado ligado ao tempo da escravidão no país

A realidade de injustiças que vivem os quilombolas no Brasil foi muito bem retratada no romance Torto Arado, de Itamar Assunção. Assim diz ele: “O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo”. Entre o século XVI e XVIII, o Brasil foi o território da América Latina que mais recebeu pessoas africanas escravizadas, estima-se que por volta de 4 milhões de homens e mulheres tenham sido forçados a vir para nossas terras em condições sub-humanas. Ao chegarem aqui eram obrigados a trabalhar nos engenhos de cana no Nordeste, na extração de minerais em Minas Gerais, submetidos a todo tipo de violência.

Muitos conseguiram fugir das rédeas dos capitães do mato e formaram comunidades rurais isoladas, nas quais passaram a cultivar um modo de produção da vida voltado à sua sobrevivência. Era nos quilombos que reconstituíam suas teias sociais destruídas pela brutalidade colonial, assim passavam a reinventar suas culturais trazidas da África com o cenário local. Resistir é a origem do quilombo, sua essência é totalmente disruptiva.

As comunidades quilombolas não são um passado ligado ao tempo da escravidão no país. Como bem menciona a socióloga e ativista boliviana Silvia Cusicanqui, a história da América Latina é melhor representada por uma espiral, na qual passado e presente convivem, vão e voltam. Em 1988, após anos de luta, reconheceu-se a presença e existência das comunidades quilombolas no Brasil, que tiveram seu direito ao território reconhecido no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), art. 215 e 216 da Constituição Federal, bem como, ao longo de governo progressistas, conquistaram o acesso a várias políticas públicas específicas. Segundo dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (CONAQ), existem 5.972 quilombos no país, situados em 1.674 municípios, de 24 estados, sendo que menos de 200 deles possuem título da terra.

A regularização fundiária dos territórios quilombolas é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), contudo o órgão sofre há anos com a precarização, muitos procedimentos de titulação estão paralisados pela falta de funcionários e estrutura. Além do que, em paralelo ao processo administrativo, várias ações judiciais são movidas pelos proprietários das terras para inviabilizar a conclusão do direito ao território, trazendo ainda mais morosidade ao processo. Esse cenário deveria ter mudado com a publicação da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2019, declarando a constitucionalidade do Decreto Federal nº. 4887/2003, que regulamenta o procedimento de titulação de territórios quilombolas no Brasil.

Contudo, segundo dados do INCRA, a titulação de terras caiu entre 2019-2022 em 62% se comparada aos 4 anos anteriores e, em 78% se comparada ao período entre 2011-2014. Em levantamento realizado pela CONAQ, existem 1.748 pedidos de comunidades paralisados no INCRA, sendo que 55 aguardam a fase de conclusão da titulação.

No ano de 2022, o governo federal vetou recursos para as políticas voltadas a comunidades quilombolas, indígenas e para a reforma agrária, destinando apenas R$ 85 mil para o reconhecimento e titulação quilombola no país. Tais cortes reforçam os conflitos nos territórios, expondo as comunidades a ainda mais vulnerabilidade social, como se posiciona o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).


Comunidades quilombolas exigiram a retomada das titulações em protesto recente em Brasília / Tiago Rodrigues/ ATBr

No último dia 10 de agosto, as comunidades quilombolas estiveram em Brasília para denunciar o desmonte da política e a violação aos direitos dos quilombolas no país. Entre as reivindicações estavam a retomada das titulações dos territórios, que aparece conectada à garantia de direitos à liberdade, educação, trabalho e saúde. Para Nilce, liderança quilombola do Vale do Ribeira, em São Paulo, há o “desafio de avançar na regularização fundiária e a titulação dos territórios, pensando em como titular os territórios em nome das associações dos quilombolas, e por isso debateram o marco regulatório”.

Também foram feitas várias críticas ao governo Bolsonaro e ao andamento de projetos no Congresso, como a PEC 215 (Proposta de Emenda Constitucional), que delega ao Congresso os processos de regularização dos territórios, ou o PDL 177/2021 (Projeto de Decreto Legislativo), que propõe a retirada do Brasil da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nilce destaca que, ao final do encontro, “reforçou-se a importância da democracia e de como nós estamos atuando politicamente como quilombos. Queremos fazer parte das discussões sobre políticas públicas aos quilombos no Brasil e das comunidades tradicionais”, inclusive da defesa das candidaturas próprias.

Cabe destacar que as comunidades quilombolas, numa parceria com sindicatos, tomando o caso das violações aos direitos da comunidade de Alcântara (no Maranhão) conseguiram o reconhecimento da OIT de que são sujeitos da Convenção nº.169, na qual sequer eram incluídos. Desde então, as comunidades têm se utilizado do instrumento para reforçar os direitos territoriais e o acesso às políticas públicas, sendo o direito à consulta prévia, livre e informada o calcanhar de Aquiles do avanço predatório sobre os territórios.

A vitória do quilombo Vidal Martins em Florianópolis (SC)

 


Após anos de muita luta, Vidal Martins é o primeiro quilombo urbano de Santa Catarina / Conta de Instagram do Quilombo Vidal Martins (@arqvima)

Em 2012, as irmãs Helena e Shirlen começam a resgatar a história de sua família, os Vidal Martins, que ocupam o território do quilombo de mesmo nome, no Norte da Ilha de Florianópolis (SC), no bairro Rio Vermelho. Elas juntaram informações no livro de escravos no Rio Vermelho, que permitiu encontrar os nomes de seus bisavôs e montar a árvore da família. A comunidade vive ali há mais de 190 anos, são 31 famílias que trabalham como rendeiras, artesãs, tranceiras, músicos, artistas plásticos, diaristas, operários e estudantes. A ação dessas mulheres criou um movimento interno na comunidade que buscou a Fundação Cultural Palmares (FCP) para um processo de certificação.

Como conta Helena Vidal, em entrevista à Amigos da Terra Brasil, a FCP veio à comunidade e reconheceu a ancestralidade e as relações com o território, concedendo a certificação em 2013. Com isso, inicia o processo de titulação no INCRA, que demorou muitos anos, sendo finalizado neste 2022 com a publicação da Portaria nº. 1511, que reconhece e declara como terras da Comunidade Quilombola Vidal Martins uma área de 961,28 hectares, determinando o primeiro quilombo urbano de Santa Catarina. Essa luta foi árdua, tendo sido necessária uma judicialização do caso pelo Ministério Público Federal (MPF) para se estabelecer um cronograma para a realização do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Enquanto isso, a comunidade sofreu diversas ameaças.

Contando sobre os desafios atuais do caso junto ao governo estadual, Helena Vidal menciona: “Agora, o quilombo luta para que o governo do estado cumpra o que diz a Convenção nº. 169 que o Brasil é signatário (...). O governador tem o dever de assinar o processo de titulação encaminhado para ele, porém a comunidade, há 4 anos, não consegue falar com o governador, não recebe a comunidade, não é sensível a ela. (...) O governador não quer dar visibilidade à comunidade, descumprindo o decreto e a Convenção”. Como o território incide em terras do Estado, o processo de titulação é encaminhado à instância competente estadual para que proceda a titulação. No caso de Santa Catarina, o estado não tem, em sua constituição, a propriedade quilombola, nem reconhece o direito em legislação infraconstitucional, o que agilizaria o processo, que está em atraso em relação a outros estados do país.

Estar com seu território titulado, carregando a documentação em suas mãos, é um direito da comunidade desde 1988. A comunidade descende de pessoas escravizadas; também foi violentada por uma expulsão de seu território durante a Ditadura Militar; estamos falando, portanto, de uma justiça de reparação histórica que precisa ser concluída. Ao refletir sobre a conclusão da garantia dos direitos territoriais, Helena explica: “A titulação é importante para a comunidade. Uma, porque é um território histórico que traz a luta dos nossos ancestrais, traz a convivência dos nossos ancestrais que foram ignorantemente escravizados. Outra é que tem todo um vínculo histórico, minha mãe, meu tio, meu avô, meu tataravô, todos descendentes de escravos, alguns escravos, nasceram dentro do território e se criaram. Depois do golpe militar minha família foi expulsa. E, para trazer também uma estabilidade para a comunidade, tradição cultural, plantio, é por meio do território; a comunidade só passa a recuperar integralmente sua identidade quando ela tem o território porque é, através dela, que consegue manter algumas práticas culturais já que nosso território é urbano. Uma cidade urbana que vive do turismo ecológico. É muito importante, fundamental, recuperar o ponto histórico, viver tradições e culturas”.

Território titulado, direitos efetivados, esperança para o futuro!

Do Aquilombar que encheu Brasília na semana passada, da resistência histórica do quilombo Vidal Martins, encontramos uma parte do povo brasileiro que constrói modos de produção da vida às margens do capitalismo, os quais se demonstram mais efetivos por resistirem a séculos de barbárie colonial. Essas lutas colocam também a importância da garantia dos direitos territoriais como caminho para a concretização de diversos outros direitos. Estar na terra, ter a garantia dela, resistir nessas formas outras de relacionar-se com o território, é construir uma alternativa sistêmica à crise social e ambiental.

Edição: Vivian Virissimo