Cinema

Festival de Locarno: filme de Ery Claver discute influência chinesa e evangélica em Angola

Em entrevista, cineasta fala da influência crescente da China em Angola e do catolicismo sendo trocado pelos evangélicos

Locarno, Suíça |
O cineasta Ery Claver escreveu e produziu o filme no primeiro semestre de pandemia - Divulgação

A presença do cineasta Ery Claver na competição da mostra Cineastas do Presente no Festival de Locarno, com o filme "Nossa Senhora da Loja do Chinês", é uma vitória cultural para seu país, Angola. Ele vem direto da população negra angolana. 

Este ano, Angola está também representada na competição internacional por Carlos Conceição, nascido em Angola quatro anos depois da independência angolana. Binacional, fez seus estudos e vive na capital portuguesa Lisboa. Ele vem ao festival com seu filme “Nação Valente”, contra o colonialismo.

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Para Ery, a realização do seu primeiro longa-metragem mostra o engajamento da juventude por uma mudança política no país. Na entrevista que nos concedeu em Locarno, ele fala de sua formação, da influência crescente da China em Angola e do catolicismo sendo substituído pelos evangélicos. 

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Venho da parte de um coletivo “Geração 80”. Venho pessoalmente de algumas curtas-metragens, mas começámos de fato a nossa carreira cinematográfica com longas-metragens como o filme “Ar  condicionado”, em que eu fui o roteirista e o diretor de fotografia. 

O filme estreou bem, em Roterdam, na Holanda, teve alguma visibilidade, passámos por alguns festivais, mas não tivemos tanta oportunidade de divulgar o filme presencialmente. Porque apareceu, infelizmente, a pandemia do Covid-19, o que nos obrigou a ficar em casa. Nesse tempo, que estaríamos a publicitar o filme “Ar condicionado”, nós parámos e eu comecei a escrever o filme “Nossa Senhora da Loja do Chinês”. Então foi uma premissa muito desafiante, feita pelo meu produtor Jorge Cohen, de que nós teríamos que fazer o filme em 6 meses. 

Escrever e realizar o filme em 6 meses que foram os meus primeiros meses de 2020 na pandemia. O processo de escrita do filme foi um pouco doloroso, mas também foi muito fácil porque eu juntei elementos das curtas-metragens que eu tinha feito previamente. A ousadia principal foi quando decidi incorporar a narração chinesa no filme e criar esse elemento com a comunidade chinesa. 

O título do filme “A Nossa Senhora da Loja do chinês” tem alguma conotação com uma influência muito grande que vocês estão tendo em Angola pelos chineses? No caso ele é o dono da loja, é o comerciante. Quando eu vi você fazendo esse filme com a língua cantonesa, eu imaginei, será que é um presságio do que poderá acontecer no futuro? 

Muito boa pergunta. Obviamente nós temos notado uma influência chinesa, não só em África, mas também em boa parte do mundo. Mas para nós, particularmente, tem sido com alguma estranheza e familiaridade ao mesmo tempo que temos acompanhado essa influência chinesa. Porque eles estão lá como comerciantes e estão a desenvolver de forma muito forte os seus negócios, mas, ao mesmo tempo, distanciam-se um pouco. O que eles têm apresentado: a sua proposta comercial com elementos ocidentais, no caso da santa. Eu escolhi um elemento que é ocidental que vem da colonização, pelo motivo religioso católico, que é bem reconhecido por nós. Nós temos essa afinidade religiosa, mas eles não têm. Mas eles usam esse elemento no filme para conquistar, de alguma forma, o povo, porque é um elemento que nós conhecemos. Mas, ao mesmo tempo, eles banalizam porque trata-se de uma massificação dessa figura religiosa, que é a santa, para um público ou para população negra.

Então nós temos um caso interessante: que é um produto asiático com características ocidentais, mas vendido por uma população negra. Nós, como angolanos, ficamos sempre no caminho de identificação muito confuso. Nós nunca temos a nossa identidade intrínseca muito bem elaborada. Nós tanto estamos com a influência europeia, no caso portuguesa. Mas agora, que já não temos a colonização portuguesa, estamos a sofrer agora uma neocolonização comercial, que é muito mais branda, mas que também com elementos que não são nossos. Então nós nos sentimos de alguma forma sempre apropriados na nossa própria situação social, no nosso próprio país. 

Ali você vê a mulher com uma goteira na casa e vem uma outra e lhe diz que com uma reza vai acabar com a goteira. E ela manda embora os responsáveis, as pessoas que realmente o poderiam modificar. Então há essa influência religiosa. Porém no filme eu escutei também falar em evangélicos. Eles também tão chegando lá? 

As igrejas evangélicas têm tomado o espaço das igrejas católicas e, se calhar, os chineses não se dão conta disso. Que a Igreja Católica já não os alude muito, como proposta de salvação. Já não tem os elementos cativantes que outrora tinha. Então a própria imagem da santa passa a ser uma imagem meramente comercial. Já não tem o mesmo efeito! E que para nós é um pouco mais difícil, porque ainda tem um outro elemento que é nós associarmos às nossas superstições. Que isso já é base da nossa cultura, que nós temos o hábito de pensar que nada é por acaso. Se alguma coisa acontece, mesmo que seja um infortúnio técnico em casa, se o teto cai é provindo de alguma força externa. O que nos obriga a procurar uma ajuda, também onírica, que se reflita com a mesma capacidade de intervenção que o problema exige. 

Nós temos então a santa introduzida nesse meio de três formas. Tu tens a mãe que está a sofrer luto pela filha num trauma, num litígio com o próprio marido, e que, como conforto, acaba por ser levada a socorrer-se pela santa. Mas ela não sabe muito bem se aquilo realmente irá resultar. É só porque é o último recurso que ela vê. Do outro lado, tens um rapaz, que não tem nada a ver com motivo religioso, mas que está à procura do cão. E o levam a acreditar que se calhar na Loja do Chinês tenham sido responsáveis pelo desaparecimento do cão por uma outra superstição. Que nem é superstição, que é que os chineses todos comem cães. Foi a probabilidade mais fácil para ele chegar lá e decidiu vingar-se da forma mais rápida e fácil, e foi atingir esse símbolo que é a santa vendida pelo chinês. E temos, sim, o oportunismo do barbeiro que é o Mapele, que, este sim, acaba por aproveitar por motivos económicos a dor dos outros. E ele pega na santa do chinês e ele próprio decide fazer o seu próprio culto, e daí também lucrar um pouco. 

E nós ao mesmo tempo temos um prólogo, que faz um “breaking point” no filme. Para mostrar em que nível de sociedade é que estamos a nível político? Que governantes é que nós temos e como é que eles agem perante à sociedade? No filme eles quase brincam de poder, num evento de fachada, onde o povo nem participa. O povo aparece lá como uma fotografia, uma moldura humana de forma fictícia através de roupas vazias. Que, ao mesmo tempo, é um símbolo, para mim, do descaso que eles têm com a própria população. Isso tudo o comerciante chinês observando de cima porque ele é que nos introduz Luanda desta vez. 

Nós vemos esse banquete, mas a influência do Partido Comunista ainda é grande? Como é que vai a democracia e a influência política chinesa e ao mesmo tempo essa comédia que foi esse banquete?

A situação política… para mim nós fizemos uma ficção, mas no filme é uma representação quase documental do que é a situação política. Ela é feita de símbolos vagos, de discursos vagos, de representações vagas: com muitas palavras e não dizem nada. Com muita grandeza, mas não há grandeza nenhuma. Então eu vejo também a Tourada, o próprio sítio onde nós encenamos o banquete, como uma espécie de simbolismo de Luanda. Tens o lugar de grandeza, mas é inacabado. Um lugar que tentou ser alguma coisa! O que eu acho que foi a nossa proposta para o nosso país. Nós acabámos com o comunismo, e lançamo-nos para o mercado aberto. O mercado livre, com a promessa dum país rico, com muito petróleo e com a promessa de que talvez agora, sem as correntes do colonialismo, o país fosse, sim, se tornar para todos e com todos. Mas, obviamente não é o que aconteceu: os governantes enriqueceram e o povo foi ficando para trás. 

Mas as aparências não são o que significam. Da mesma forma que nós temos um comerciante chinês apelando pelo seu negócio, através de uma figura da santa. Eu vejo que quem se deslumbra mais pelo negócio do chinês são os próprios governantes no filme. Porque há um certo conluio. Se calhar não está bem descrito no filme, ou está muito nas entrelinhas, que é a própria elaboração no início do filme, do evento que é financiado pelo chinês. É o próprio evento da tourada. Ele é que promove aquilo. Então eles quase entregam o país para alguém. E são eles que festejam e se divertem. E não têm de se preocupar, nem com a situação religiosa e nem com a situação popular, e fazem parecer que está tudo bem, mas não está.

*O jornalista Rui Martins está no Festival Internacional de Cinema de Locarno, um dos mais importantes e antigos do mundo, ocorrendo anualmente desde 1946.

Edição: Nicolau Soares