Bolsonaro conseguiu colocar à prova o funcionamento das instituições do Estado sob seu comando
Quando Jair Bolsonaro assumiu o governo em janeiro de 2019 havia uma grande preocupação dos setores democráticos com a perseguição que seria perpetrada contra os movimentos sociais e a oposição, com a violência institucionalizada. Passados quatro anos, é possível dizer que houve menos intensidade do que o esperado nesse campo, não pela ausência de intenção nesse sentido, mas pela reação que se impôs. A violência cresceu, as armas em circulação mais que triplicaram, o medo virou ponto de esfriamento. Mas os movimentos sociais foram às ruas, a oposição atuou. O enfrentamento falou mais alto.
Em compensação, Bolsonaro conseguiu colocar à prova o funcionamento das instituições do Estado sob seu comando, fazendo um modelo de aparelhamento da máquina pública nunca visto, ora de forma escancarada, ora camuflada. Utilizou as pastas dos ministérios, fundações públicas e agências para fomentar políticas contrárias às finalidades para as quais foram criadas, destruindo o que havia e perseguindo servidores. Determinou sigilo de todos os processos de investigação que se abriram para verificar desvios seus, de seus filhos, de seus partidários e seguidores e de membros do seu governo.
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O presidente utilizou a “caneta bic” para trocar o comando da Polícia Federal e os titulares das investigações sempre que chegavam perto dos seus adeptos. A tinta também serviu para nomear aliados declarados ao Supremo Tribunal Federal (STF), para manter um procurador-geral da República decorativo, garantindo que nenhuma apuração prospere, para anistiar um deputado correligionário condenado, e para distribuir dinheiro de emendas do orçamento, garantindo o apoio no Congresso Nacional daqueles que antes dizia que iria combater.
O pensador italiano Antônio Gramsci, ao introduzir o conceito de hegemonia como imprescindível para analisar a sociedade do século XX, já alertava sobre a busca do consenso para firmar a legitimidade em torno de determinado projeto. O bolsonarismo, além do embate corrente com pregação nas redes sociais, a reprodução de dogmas religiosos dentro e fora das igrejas, a militarização das escolas, a disseminação de preconceitos, desinformação e intolerância de toda ordem, levou essa disputa para o centro do comando do país, utilizando todos os instrumentos legais que dispunha.
Esta semana, duas notícias deveriam chamar a atenção. Em meio ao turbilhão de fatos envolvendo a campanha eleitoral, passaram quase desapercebidas e foram tratadas de forma secundária pelos veículos de imprensa e mesmo pela classe política.
A primeira delas é que o delegado Bruno Calandrini, responsável pelo caso de corrupção no Ministério da Educação e Cultura, que prendeu o ex-ministro Milton Ribeiro e mais outras quatro pessoas, e vinha denunciando tratamento diferenciado ao ex-titular da pasta, pediu formalmente a prisão de integrantes da cúpula da Polícia Federal.
Pouco provável que um delegado, servidor público, coloque sua carreira em risco fazendo um pedido inédito dessa natureza sem que tenham fatos que justifiquem. A questão é absolutamente grave e deveria merecer diligências e pedidos de acompanhamento do caso no STF, pressão social para evitar o abafamento e retaliações do agente que denuncia, como parece estar se desenhando, pelas notícias veiculadas.
Em outra ponta, um fato que poderia passar quase como pitoresco, não fosse simbolicamente uma expressão nazista de apagamento da História.
No Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro, que foi reformado, sobre a placa comemorativa há uma tarja preta sobre o nome do Presidente da República que o inaugurou: Luiz Inácio Lula da Silva. Questionados, a resposta dos servidores é que não se pode fazer “propaganda política” em órgão público. Estão, obviamente, respondendo o que lhes foi orientado, conquanto totalmente ilegal e sem propósito seja a explicação.
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Fora a enorme hipocrisia de um governo que passou quatro anos fazendo propaganda política com dinheiro público, como os onerosos passeios de moto pelo país em plena pandemia de covid-19, sabe-se que as placas nas obras com o nome das autoridades são meramente informativas, sem qualquer vinculação eleitoral.
O bolsonarismo praticado nos órgãos do Estado padece de qualquer limite, estende-se a todos os ramos, áreas, espaços, não se limita ao enfrentamento direto na grande política, mas usa de uma imensa complexidade na disputa permanente e cotidiana, levada a cabo pelos mais variados sujeitos sociais incluídos na estrutura. São formas concretas de tentativa de destruição de qualquer institucionalidade e de apagamento, tal qual o Nazismo e suas queimas de livros em praça pública.
Essa tragédia não é possibilidade, está dada na nossa realidade. Não será revista sem deixar marcas, sequelas, resíduos. O que significa que nosso desafio vai muito além das eleições e mesmo da governabilidade de um mandato progressista. Será constante e exigirá dedicação em favor de recompor um ideal civilizatório.
*Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. É integrante do Grupo Candango de Criminologia da UNB (GCcrim/UNB) e integrante da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Confira outros artigos aqui.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo